terça-feira, 29 de maio de 2012

Epílogo - Parte 2: início, meio e fim!

     Logo às 3:30 da manhã estava de pé. Precisava levantar antes de todos, preparar meu café preto, comer meu mamão...Lá pelas 4 da matina a galera começou a surgiu. Pouco a pouco iam dando o ar da graça na sala, as conversas paralelas surgindo e, de repente, tínhamos até trilha sonora: Coldplay entonava "Clocks" para levantar os que ainda desacreditavam de estar de pé tão cedo.

      Nos juntamos aos demais membros da delegação campineira (Lincon Ikeda e Luis Natal) e rumamos em direção à largada. Ainda noite, madrugada fria, mas ainda sim com o céu limpíssimo, totalmente estrelado. Bom sinal! Chegamos à largada, Special Needs entregues, fila para numerar, última passagem pela bike, pneus calibrados e, já pressionados pela organização, adentramos à zona de transição para nos trocarmos.

     Vaselina por todo o corpo (não, essa piadinha não vai colar aqui!), roupa de borracha, óculos, touca, água e um gel de carbo. Estávamos prontos, todos vestiam suas armaduras, seus capacetes verdes reluziam no ambiente e, em um mix de empolgação e foco, deixávamos em fila as tendas em direção à praia. Foi então que, ao sair a céu aberto e pisar na praia, pude contemplar tal imagem. Estaria ali o segredo para tantos pagarem 600 dólares (agora $700!!!) anos seguidos? Não sei, mas já começava a fazer sentido.



     Um pouco de tumulto para entrarmos no pórtico de largada, mas rapidamente todos já mantinham o olhar fixo no horizonte, visualizando a primeira boia, repassando a estratégia, tentando deixar os bons pensamentos fluírem. E então, como um golpe vindo do desconhecido, o transe é quebrado por um barulho ensurdecedor: uma corneta urra na silenciosa manhã de Jurerê e aqueles que até então pareciam meditar, como se ordenados por seu general, se lançam ferozmente contra o mar, dando inicio ao espetáculo. Um longo dia estava por vir.




     Duas mil pessoas ao mar. Deixei que todos se horizontalizassem, pois assim saberia o quanto tinha de espaço e por onde nadar. Caí na água, visualizei a primeira boia e comecei a natação. Logo nas primeiras braçadas, um  conselho me veio à cabeça: "acelere a braçada, sem força, para vencer a correnteza". Samir Barel havia me dito isso logo após nosso último treino. Valew Samir!!! Navegando bem, senti que progredia por entre aqueles que muitas vezes pareciam não saber para onde rumar. Contornei a primeira grande boia, alguns safanões para me livrar do bolo, segunda boia e rumamos para praia. Então o primeiro problema: não tinha claro onde deveríamos sair na praia. O referencial de navegação estava ok, mas seria ali o local por onde passaríamos? Logo descobri que não e que estava um pouco à esquerda do ponto de chegada. Consertei no nado, fiz a passagem em terra, água pra lavar a boca e água de novo. Segunda perna da prova.

      De cara ficou claro que a coisa mudara. O mar estava diferente, ondulava mais, uma corrente retinha o nado. "acelere a braçada, acelere a braçada...". Encaixando bem o nado, consegui me fazer deslocar e, novamente na muvuca, fiz o contorno da terceira boia. Poucos metros à frente e a última boia. A partir dali era voltar para terra firme. " Se for para errar, erre para esquerda". Eduardo Mariutti havia me dito pouco antes da largada. Achei meu referencial em terra e parti. A tenda do evento estava no extremo direito da praia e eu tendendo a esquerda. "Hum, não vai dar certo...". Comecei a "endireitar" o nado e, mais perto da praia, pude ver que a saída era sim na extremidade direita, justamente onde evitara ir. Consertei novamente na braçada e, ao ver a areia aparecer no fundo d'água, não me contive e dei uma boa gargalhada (ainda submerso. Em tempo de me afogar...). Corri para a praia e, em meio a uma gritaria ensurdecedora e a mente embaralhada de tanto sacudir, corri para a primeira transição.

     Pra tirar a roupa de borracha é simples, brincadeira de criança: um staff te chama e você, inocentemente, vai. Quando está bem perto ele te para e o empurra para trás, onde um coleguinha dele já está ajoelhado rente às suas pernas. Enquanto despenca, ele agarra a roupa e puxa. Antes de bater no chão, você está pronto para pegar a bike! Mentira, fora o empurrão, o resto é verdade. Muito rápido. Troquei de roupa, peguei a matula, afivelei o capacete e fui pra bike.

     Garmin no braço com apenas uma função: mensurar a frequência cardíaca. Em cima disso saberia se não estava exagerando. Um começo meio sinuoso, ruas de paralelepípedo, buracos...tenso. mas foi só pegar o asfalto e o pedal começou a fluir. Clipei na bike e mandei ver. Queria fazer uma boa primeira volta e segurar na segunda para correr bem. E fui. Fazendo bom uso de toda a estrutura da prova, completei os primeiros 90 km bem e parti pra segunda volta. Paralelepípedos, asfalto, subida do cemitério (quem veio primeiro: o cemitério ali existente ou o primeiro ciclista morto de cansaço?). Pesado, mas passou. Uma descida alucinante permitiu tirar a diferença e retomar meu ritmo. Estava muito forte. "Em quanto está minha frequência cardíaca?". Ao olhar para o meu punho, apenas o fundo do Garmin. Ele se auto destruíra sem aviso prévio. Fitei aquilo atônico, desacreditando na cena. Acabei a descida, respirei fundo, desafivelei o que restara e pinchei longe. Pronto, um problema a menos! O braço ficou até mais leve. Fiz o restante do percurso e adentrei em Jurerê para completar o pedal. Me sentia bem, sem dores musculares, bem nutrido, hidratado. Agora era hora de me divertir. Entreguei a bike, calcei o tênis, viseira e saí pra correr.

      Tinha algo muito claro: não correria em subidas. Apesar de estar me sentindo bem, estávamos falando de 42 quilômetros de corrida, distância suficiente para mudar tal condição. Conselho do mestre: "faça o simples, o que foi treinado". Parti para os primeiros 21 km, começando bem leve nos primeiros 30 minutos e soltando aos poucos. Logo no primeiro quilômetro um competidor (Marcelo, não lembro o número) puxava a perna cheio de dor. Passei por ele e lembrei que tinha comigo um spray de Salonpas. Parei de correr, tirei o spray e ofereci a ele, que sem pestanejar, aplicou em seus quadríceps. Exagerou na dose, ok. Pensei que ficaria sem, mas preferi acreditar que, se precisa, fariam o mesmo por mim. Segui em frente e, quando começava a gostar de correr, a temível subida para Canasvieiras surgiu. Avistei o Luizão logo acima que, com um pedal fortíssimo, tinha saído pra correr um pouco antes. Aproximei, comecei a andar, conversamos um pouco, voltei a correr, mas ele preferiu segurar. Parti sozinho. Mas uma subida dura, um desfiladeiro para descer, uma curva a direita e pronto: a visão do inferno. Pelo amor, uma reta tendendo ao infinito. Corri, andei, comi, bebi e nem sinal do retorno. Via-se pessoas indo e vindo, mas nunca onde invertiam o sentido. Eduardo Mariutti, Luiza Tobar, Orival, todos voltando e eu indo! Pra onde ainda não sabia. Alguns longos quilômetros depois o tão esperado retorno e, já conhecendo o caminho de volta, ficou fácil trazer o corpo pra casa. Chegamos ao pé do morro. Hora de voltar para o outro lado. Subir andando, descer correndo. Pronto, adentrei a Av. dos Búzios e rumei pra fechar a metade da corrida.

     Quase chegando, avisto Letícia e Muru. "Porra, até que enfim apareceu". Ok Muru, também estava com saudades!! Festinha rápida, uma foto que não deve ter dado certo e hora de completar os 21 km. "2:04 - bom tempo". Eram mais duas voltas de 10 km e pronto. Abri a primeira certo de que o que estava sendo feito até ali surtia efeito. Tendia a andar antes que meu corpo pedisse, mantendo-o relaxado, nunca na tensão máxima. E assim segui ao longo da volta pequena: correndo um pouco, soltando de leve, usando os postos para me hidratar e comer... sem pressa. Fechei a segunda volta e, partindo pra última, um posto de hidratação servindo sopa. "Nossa, esperei por isso o dia todo!". Peguei um copo e me deliciei com ela. Estômago forrado e espírito renovado, voltei a correr. Foi quando cruzei novamente com o Muru que, antes mesmo que eu abrisse a boca, mandou um "não fala nada porque está sobrando aí!". Percebi naquele momento que ele tinha razão. Bem disse o Dedé "o cara que fala as coisas certas na hora certa". Rumei para finalizar a corrida confiante que conseguiria me manter correndo.



     A cada posto de hidratação, um copo de sopa. Aquilo estava me jogando pra cima. Mesmo bem, preferi não forçar o ritmo antes da hora. Conduzi até o quilômetro 39, na tão rodada Avenida do Búzios. A partir dali era dois pontos: o local onde me encontrava e o pórtico de chegada, ligados por uma reta. "A minha reta". Decidi que ali seria deixada a última gota de energia. Iria acabar correndo, e bem! Apertei o passo, imprime um bom ritmo e fixei o olhar nos holofotes que estavam acima do relógio da prova. "É ali que quero estar". E fui.

     Mas o sistema é bruto e, após 11 horas de atividade ininterruptas, qualquer metro faz diferença. Comecei a achar que os quilômetros haviam espichado, que a "gasolina" iria acabar antes da chegada. Limpei minha mente de maus pensamentos, respirei fundo e continuei. 40 km, 41 km, agora não tinha mais volta, bastava chegar.

     E então, de novo, encontrei a dupla Lê e Muru. Juro, o Murilo demonstrou todo o seu fascínio pelo Iron ao longo de nossas conversas antes do grande dia (hoje te entendo meu camarada!), ma a Letícia estava numa euforia... Dava gosto de ver! Não tive dúvidas, convidei-a para chegar comigo. Cara, só quem está ali dentro para dizer o que representa receber um apoio direto, ouvir seu gritado com vontade, ver alguém torcendo por ti. Não seria possível levar a todos até a chegada. Escolhi a melhor representante da torcida Ironman. Saímos correndo juntos por um corredor humano muito estreito. Ela, de tão animada, começou a correr mais rápido que eu! Tive que pedir pinico e gritar um "segura Lê...", senão não chegaria! Adentramos o tapete azul e, bombardeado pelo mesmo holofote que me guiou até ali, fomos recepcionados por uma galera que vibra a cada competidor que por ali passa. Rumamos para o pórtico e, enfim, passamos por baixo do grande relógio. Foi como ser agraciado. O corpo fica em paz, a mente tranquiliza e, por um breve momento, não se ouve mais nada a sua volta. Você para ali, em meio a tantas outras pessoas, e consegue se ver conversando sozinho: "conseguimos!". A última olhada para cima e a pose para foto.

     


     A euforia não passa, a vontade de fazer de novo. O corpo não pede descanso, pede mais, quer mais! Pausa pra massagem, lanche rápido, troca de roupa e comemorar com os amigos. Aqueles que chegaram, os que estão por chegar, os que "apenas" torceram, todos reunidos não deixam que o evento pare, que o dia termine. Impossível explicar!

     Fica aqui meu agradecimento a todos que partilharam comigo ao longo desta Odisseia. Tivemos maus e bons momentos, mas garanto que valeram a pena e que, fácil, faria tudo de novo. Aos meus dois mestres, Marcio Lazari e Samir Barel, responsáveis pelo sorriso na foto acima. Sem vocês essa carinha estaria diferente! Aos meus compenheiros de treino e, por que não, amigos: Luizão, Felipe, Donga, Bruno Zoim, Muru, Dedé, Fernandinho, Ricciarelli, Lanaro, Natal, Lincon, Matheus, Joaozinho, Lê, toda a galera da 3Sports e Elo Consultoria; amigos do dia a dia pelo incentivo; Jorge Coli, meu mecenas, enfim, é gente pra caramba!!! É isso, agora só no próximo grande desafio. Por hora, fica a mensagem abaixo. Valew!


     

Epílogo - Parte 1: Os dias que antecederam

   Era para chegarmos às 9 horas da manhã de quinta feira, mas nos deparamos com um congestionamento monstruoso ainda no Estado de São Paulo. Quilômetros de carros e caminhões parados ao longo da estrada, sem esboçar nenhum sinal de deslocamento. Quando, enfim, conseguimos sair de tal situação, buscamos ao máximo tirar a diferença, mas não teve jeito: fomos forçados a, já às 3 horas da manhã, pararmos em Curitiba para dormir. Uma certeza: perderíamos o treino de natação daquele dia.

    Acordamos cedo, tomamos o café da manhã e continuamos nossa peregrinação. Destino final: Florianópolis. Rodávamos bem, descansados, alimentados e sempre acompanhados por um Sol maravilhosamente brilhoso. O dia estava perfeito! Chegamos perto do meio dia, fomos para praia e acompanhamos o final do treino. Entre profissionais e amadores, todos circulavam pela praia de Jurerê. Eu, boquiaberto, acompanhava tudo, tentando não perder nenhum detalhe: cada bicicleta que rodava pela Av. dos Búzios, cada atleta da elite que cruzava conosco, equipamentos... com certeza estava na Ilha da Magia!

     Almoçamos, nos instalamos em nosso QG e fomos retirar o kit na Expo Iron. Uma galera dispersa em filas aguardavam pelo atendimento. Atletas se cumprimentavam, uma infinidade de sotaques e idiomas davam sonoridade ao recinto. A empolgação vinha crescendo, uma sensação gostosa de estar ali, de poder fazer parte de um espetáculo como aquele. Hora de ser atendido.


   
     Já no balcão, um check in rápido, fotinha para registro, uma breve explicação, pulseira de identificação e a infinidade de sacolas que o Ironman exige ao longo do dia. Todo conferido, nada faltando, camiseta no tamanho certo, hora de descansar.


   


     Sexta feira: será?


     O dia começou chuvoso, carregado, não lembrando em nada o que havíamos vivenciado no dia anterior. Aos que estavam ali para fazer turismo, a estrada. Luizão (Luiz Eduardo - 1121) e eu ficamos em casa, aproveitando toda aquela água para descansar. Congresso técnico de leve, últimas dúvidas esclarecidas e voltamos para casa. A tarde foi dedicada ao ócio. O treino programado tinha ido, literalmente, por água abaixo. "O que fazer à noite?". Fácil, jantar de massas do evento!

     Chegamos ao clube por volta de sete da noite. O cheiro de molho já se alastrava pelo ambiente, a fome despertava de um sono não tão profundo e, antes mesmo de cumprimentar alguém, já estávamos com os pratos em mãos, servindo tudo que tínhamos direito. Uma verdadeira obra prima! Agora era achar onde sentar.

     Foi então que demos conta: não havia mesas vagas! Ficamos rodando pelo salão em busca de brechas. Encostamos em uma mesa e o garçom, gentilmente, tratou de limpar um pedaço da mesma e o "gringo" que ali estava se prontificou a ajudá-lo e ofereceu-nos os lugares. Sem muito charme, puxei a cadeira e começamos a jantar. A gringaiada conversando e nós comendo. Então, quando a maioria havia levantado, uma das meninas que estavam juntas nos perguntou se sabíamos quem era o gringo principal ali presente. Negando conhecimento, fomos informados que estávamos à mesa com ninguém menos que Ken Glah (procurem no Google!). O cara é só um ícone no triathlon mundial, mais nada! Enquanto tentava não morrer engasgado com a notícia, o próprio retorna à mesa e senta ao nosso lado. Que figura simpática! Sempre sorridente, pergunto se era nosso primeiro iron, contou um pouco da sua vida no esporte e, sem nenhum arrogância, disse ter feito 65 ironmans, sendo 10 no Brasil. "65 irons? Putz...". E então veio, abaixando o tom de voz e adotando um semblante mais impositivo, deu-nos um conselho: "Durmam o máximo que conseguirem de hoje até amanhã de manhã, pois o corpo funciona em ciclos de 48 horas e a noite de sábado nem é tão importante. Descansem hoje!". Amigo, nem que o maior estudioso da área desportiva baixassse ali e tentasse contradizê-lo, seria levado à sério. 65 Ironmans? Me despedi de Ken e regressei ao QG. Era hora de dormir!


Sábado: o tal do vento Sul deu as caras!

     Em meio à toda aquela água de sexta, uma"guria" nos disse que "ia passar um vento Sul e que o tempo ia limpar". Acordei sábado bem cedo, já sentindo um calor diferente. Ao sair fora da casa me deparei com um céu de um azul ofuscante, sem nenhuma nuvem. O tal vento Sul tinha realmente atropelado o mau tempo. Perfeito! tudo levava a crer que o domingo seria de tempo bom. Últimos ajustes no equipamento, checagem na bike, todas as sacolas montadas, hora de fazer o bike check in.

     Já na Expo, demos entrada, checagem geral, pose para foto, um staff para te levá-lo ao seu cavalete...o negócio funcionava bem! Posicionei a bike, entreguei minhas sacolas e fui dar uma volta pelas tendas. Tentava encontrar Letícia e Muru, que haviam chegado naquele dia, mas até nada. Rodei, rodei e nada. Já estava em processo de despedida, pegando a chave de casa para continuar meu retiro espiritual, quando vejo uma morena cheia de dentes vindo de braços abertos no meu rumo. "Querido, isso é Florianópolis!" pensei. Enfim os dois queridões surgiram!!! Social com as famílias Coelho e Ribeiro, um bate papo animado, Orival Andries e seus mascotes completando a festa... agora sim o negócio ficara animado! Um breve resumo do que se passara até ali e, inclusive com um sermão do Sr. Murilo Barizon,  parti para casa. Reta final. Deitaria apenas mais uma vez. A próxima levantada da cama seria para encarar meu primeiro Ironman. Fechei os olhos e deixei que o sono viesse.



sábado, 19 de maio de 2012

Os Cavaleiros do Apocalipse



     Último treino na tão rodada estrada Campinas-Mogi. Não irei mais para aquelas bandas, nem antes e nem depois do Ironman. Acabou! Mas tínhamos que fazer bem feito, fechar com chave de ouro. Formamos então um pequeno grupo, quatro membros: André Nogueira, Murilo Barizon, Bruno Zouain e eu.

     Éramos pra sair às 7:30 horas, mas apenas Bruno e eu estávamos à postos no horário. Muru chegou um pouco depois e, bem depois, o Dedé deu o ar da graça. Atrasados sim, desanimados jamais. Montamos nossas magrelas e partimos para missão. O que era para ser um pedal tranquilo, se tornou algo indescritível. Já no primeiro metro de rodovia passávamos dos 45 km/h. Alucinante! Os quatro cavaleiros do apocalipse marchavam para cumprir sua missão.

    Muru, a Peste: conduzindo sua Felt branca, com um pedal conciso, formava a primeira fila do pelote. Um cara de sorriso fácil e um repertório sarcástico, nada passa impune aos seus olhos e ouvidos. Um singelo comentário, uma vacilada e pronto, ele não perdoa. Garantia de boas risadas, mesmo em momentos de extremo estresse e esforço.

     Zoin, a Guerra: com sua Guerciotti rubro negra, está sempre pronto para um desafio. Parece não haver limites intransponíveis. Seja na água ou em terra, a competição está presente e a palavra "derrota" não pertence ao seu vocabulário. Dotado de uma força descomunal, é capaz de fazer frente a qualquer um que cruzar seu caminho. Sua presença em um treino é certeza de muito sofrimento e exaustão.

     Dedé, a Fome: montado em sua Kestrel preta, uma vez iniciado o treino, só se tem a chance de conversar com ele mediante esforço extra. Encabeça o pelote e de lá não sai mais e, em hipótese alguma, é ultrapassado. Agraciado por uma formação muscular impressionante, atinge médias que muitos almejam e, sem o menor pudor, é capaz de te fazer comer poeira à menor de uma tentativa de ataque. Parece sentir prazer em enfrentar as forças da natureza, encarar o vento de frente. Para favorece-lo com o vácuo, apenas indo de moto!

      Thiago, a Morte (ou seria o morto?): pedalando um Quintana Roo cinza, tinha como treino apenas duas horas de ciclismo com qualidade, afinal estamos a uma semana do Ironman e em fase final de polimento. Porém, acompanhado pelos senhores acima citados, nada me restava a não ser tentar acompanhá-los enquanto conseguisse. Sabendo ser o mais fraco de todos, raramente subia à ponta, me mantendo na parte final da formação.

     Pois bem, e não foi só o primeiro metro que marcou uma grande velocidade. O segundo, o terceiro, o décimo... Íamos em um ritmo frenético, a ponto de nossas tentativas de sinalização se tornarem inúteis. Seria mais fácil termos setas, pois, quando mencionava-se estender o braço para informar a direção, já havíamos passado. Nas subidas (figuras constantes no percurso) o ritmo caía e atingíamos a insignificante marca de 27 km/h (na verdade eu atingia, pois a Fome não deve ter abaixado de 40km/h e os demais continuavam no encalço). Formação dois a dois, Bruno solta um "38 de média!". Estávamos quase em Holambra e uma média que, para mim, era comum em plano. Ficou uma certeza: "vai dar merda!".

     Seguimos, além do pontilhão de Holambra, por mais uns 15 quilômetros e então entramos no retorno. Pausa para aliviar as tensões, checar as provisões e, não havendo necessidade de pararmos em um posto, voltarmos direto para Campinas. Readentramos na rodovia e o ritmo foi reposto. Aproveitando o trecho plano que estávamos, me mantive perto do grupo. Então chegou a primeira subida e com ela meus problemas.

     Flertando entre a limitação física e os traumas psicológicos, o certo é que, do pontilhão de Holambra até o pedágio, sofro de uma forma descontrolada. É como se o sistema quebrasse, parasse de dar certo, pifasse. Sou incapaz de lembrar uma vez que fiz tal trecho de forma exemplar. Por que então hoje, com 38km/h de média, seria diferente?

     Não seria. Eles abriram uma distância considerável e, como se duelassem pelo primeiro lugar, focaram o olhar à frente e partiram. Sem ter o que fazer, mantive o ritmo que conseguia àquela altura, rezando para que a descida chegasse logo. Se tudo que sobe, desce, aquela era minha chance. Quase simbioticamente, encaixei-me à bike e tentei obter a melhor aerodinâmica, o que me possibilitou tirar um pouco da diferença.

     Porém mais uma subida surgiu e, com ela, outra em seguida, o que me fez perdê-los novamente. Já estava muito cansado, muito além do que precisava para o dia, preocupado com uma possível lesão como resultado de um esforço demasiado. "Colocar tudo a perder? Jamais!". Contive o ímpeto de alcançá-los e toquei de forma branda até o tal pedágio.

     Pronto. Com se saísse de uma bolha, um campo que estivesse a sugar minhas energias, senti meu corpo ressurgir, minhas pernas responderem aos estímulos, minha cabeça bloquear os maus pensamentos. Conseguiria, a partir dali, continuar com eles até o fim. E fomos por mais 9 quilômetros. Os outros três pareciam não ter treinado ainda. Continuavam a pedalar forte, conversando entre si e rasgando o asfalto. Eu me conformava em tentar acompanhá-los, em silêncio, pois era possível que, na tentativa de dizer algo, a energia despendida no ato me fizesse deixar de pedalar. Assim chegamos ao ponto de separação, eles para o Taquaral, eu para Barão. Nos despedimos e eu, reduzindo bruscamente o ritmo, toquei para casa. Fim do meu último treino de estrada rumo ao Ironman. Foi bom enquanto durou!

  

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Fechado para balanço

  

   É isso, dez dias para o Ironman. Fisicamente não resta muito a fazer, apenas tentar conservar tudo que foi construído ao longo do último ano até o dia da prova. E, oscilando entre a euforia e o nervosismo, me peguei analisando todo o processo de preparação que uma prova dessa requer, do dia da inscrição até o momento da largada. E a conclusão é sinistra!

     A correria para se garantir no evento já não é novidade por aqui. Meu Deus, como esquecer a agonia de descobrir (um pouco tarde!) estar no link errado, com fuso diferente e, doze minutos após a abertura das inscrições, já não ter mais vagas pelo site nacional? Acordar às 5 da manhã para tentar fazer pelo sito gringo e não ter o limite? Sair de casa Às 6 da manhã, acordar outra pessoa quase a implorar para que fizesse a inscrição? E, depois de quase 10 horas, enfim ver meu nome confirmado no evento. Se algo começa dessa forma, imagine como vai terminar!

    Daí em diante vieram os treinos. Primeiro sozinho, depois com um técnico de verdade. Grande Márcio Lazari (o coach), responsável não apenas por fazer planilhas, mas por formar atletas, sempre pronto para oferecer uma palavra, seja ela dura ou branda, porém objetiva. Ao longo de nove meses viemos aprimorando nossa relação e, o que começou como algo comercial, profissional, virou uma amizade. E dos treinos, o que fica?

      Sem sombra de dúvida, a palavra que rege a preparação para um Ironman é disciplina. Não é fácil manter a rotina de treinos sem um controle exato de todas a horas do dia. Acordar às 5 da manhã, nadar em piscina descoberta em pleno inverno campineiro, sacrificar todas (sim, TODAS!) as noites de sexta e manhãs de sábado em prol dos treinos, visitar as Mogis todo sábado e ainda manter a rotina de trabalho, estudo e, se der, um pouco de lazer. O mais interessante? Quase sempre com prazer (sim, porque ninguém é perfeito!). E o que  te faz se manter motivado por tanto tempo? Mas que a busca pela realização pessoal, é, a cada treino, olhar para os lados e ver mais um bando de loucos na mesma jornada. Forma-se um clã e damos força uns aos outros. Aprende-se muito nesse meio, pessoas importantes ficam pelo caminho, novos grandes amigos são conquistados e todo o sistema entra em equilíbrio. 

    Agora, perto do fim, chega a hora de pensar a logística da prova. Revisar bike, verificar todo o equipamento a ser usado no dia da prova, comprar os itens faltantes, suplementos....São cinco sacolas ao longo prova. "O que colocar em cada uma?". Calcular o quanto de carboidrato a ser consumido por hora, o quanto de sal, o quanto de água, como dividi-los, qual ponto de reabastecimento utilizar... Nossa, muita coisa! Imagine ter que somar a comida para atingir a marca proposta para uma hora de atividade. Para mim, loucura! 

    E assim passo minha última semana. Tenho três folhas de papel à minha frente, cada uma contendo um tópico: "sacolas da prova', "combinação alimentar (comer + beber)" e "toda a logística". Volta e meia me pego a riscá-la: "será que como essa batata aqui? esse gel vai bem com esse pão? por quanto tempo ficarei com essa garrafa de Gatorade?" Nada fácil.

     Mas agora já temos quase tudo sob controle. Ajustes finas, última visita aos Mogis no sábado e, já na quarta, partimos para Floripa. Posso afirmar, após tanto tempo, que o papel de um técnico foi fundamental, pois cumprir a planilha é a parte fácil da coisa! Lendo a respeito do Ironman, vi alguém citar "deveríamos chamar 'natação.ciclismo.corrida.nutrição'". E é por aí mesmo, pois um erro nutricional no dia da prova (ou até no dia anterior) e você põe tudo a perder. Se a minha estratégia vai dar certo? Não sei. O certo é que li muito, conversei com minha nutricionista, com meu técnico, montei uma boa bagagem e agora é por em prática. Esperar o grande dia e fazer dele um momento de alegria, aproveitando ao máximo e torcendo para nada dar errado. Boa sorte para mim! Boa sorte para nós! 


sábado, 12 de maio de 2012

Persistindo

   

     Uma semana! Esse foi tempo que passamos planejando o treino deste sábado. Recrutamento de pessoas, horário, local de encontro, tudo para conseguirmos reunir o maior número de participantes. Após um hiato de 5 dias, estava louco para voltar à estrada. Ansiedade, euforia, sensações que se confundiam ao longo da semana, fruto de uma espera. Era o retorno, tinha que dar tudo certo.

     Os dias se passarem e, enfim, chegou sexta-feira. As mensagens "bombavam" na internet, todos alucinados pelo encontro da manhã seguinte. Última checada na bike antes de dormir, preparativos para o treino, equipamento e vestimento ok, poderia me entregar a uma merecida noite de sono.

     O plano era simples: acordaria mais cedo e iniciaria o treino antes. Saindo de casa às 6, rodaria uma hora até o horário marcado pelo grupo. Faltam apenas 15 dias, agora os treinos são carregados com precisão, atenção aos detalhes. Cada sessão é regida pela palavra "qualidade". Não é hora de gastar energia à toa, mas priorizar uma boa execução. Seguindo o planejamento, cumpriria à risca minha planilha. Certo que havia deixado tudo em ordem, fui dormir.

     Então, meio perturbado, sob efeito de um remédio para gripe, tive a nítida sensação de que algum som adentrava minha mente. Estava sonhando? Parecia muito real e, como se não quisesse acreditar, fui recuperando os sentidos e pude observar que, a exatas 3 horas do início do treino, forças maiores conspiravam contra nosso planos. Chovia, e chovia muito! Seria impossível (e imprudente) nos lançarmos estrada afora. Fiz o que restava fazer: voltei a dormir e esperei que passasse.

     O despertador então tocou: 5:40 da manhã. "E o tempo?". Nada, ainda chuvoso. Permaneci deitado, pairando entre os sonhos e a realidade. Então, a primeira mensagem. Um dos que fariam o treino indagava sobre as previsões. "Parece que não vai ser hoje!". Realmente nada levava a acreditar no oposto. Mais uma cochilada e o segundo telefonema. Mais um. Dessa vez a conversa tomou outro rumo. Luisão e eu decidimos que ficaríamos à espera de uma trégua para tentar realizarmos o treino.

     E ela veio. Quase dez horas da manhã, já sem chuva, mas com o chão ainda bem úmido, decidimos que valia à pena tentar. Troquei de roupa, arrumei a bike e, quase partindo, resolvi observar mais uma vez pela janela. O dia estava cinza, carregado, como se estivesse à espera daqueles que tentassem desafiá-lo. Correria o risco, mas por via das dúvidas, coloquei uma blusa de frio, certo que não seria zelo demasiado.

     Nos encontramos no ponto pré estabelecido e partimos para estrada. E, logo nos primeiros metros, ficou claro que o dia seria longo. Ao sairmos da primeira curva, como se estivesse escondido atrás do muro de proteção, um vento alucinante começou a soprar contra. Era como se não quisesse que continuássemos. Estava empenhado em fazer-nos desistir. "Não tão cedo". Seguimos adiante, descidas resistidas, subidas quase em velocidade de caminhada. Não era o retorno que esperava, mas resolvi usar aquele momento a meu favor. É sabido que em Florianópolis o vento castiga, e muito, no ciclismo, além de ter quedas bruscas de temperatura. "Estaríamos então em processo de aclimatação?" Poderíamos dizer que sim! Luisão, já conhecedor da prova, confirmava com um sorriso marcado, digno de alguém que carrega as marcas deixadas por uma prova dessa magnitude. "Quem disse que iria ser fácil? Isso é Ironman, meu filho!". 

     "Nada é tão ruim que não possa piorar". Frase típica de pessoas pessimistas certo? Talvez, mas foi a primeira coisa que pensei quando, ainda em Jaguariúna, olhei para baixo e vi meu pneu traseiro murcho. "Só faltava essa!". Paramos, desci da bike e vi que, mesmo vazando, parecia um firo pequeno. Resolvi encher o pneu e seguir. Valeu a tentativa, mas não passamos de Holambra. Fui obrigado a parar (novamente) e, dessa vez, trocar a câmara de ar. Fizemos todo o processo e retornamos para a pista. Primeira subida, Luiz puxando, eu olha para baixo e o que vejo? Sim, pneu furado de novo. Não, impressionante. Havia feito uns 500 metros apenas com aquela câmara. Começava a creditar que seria melhor ter ficado dormindo. Tentei tirar os maus pensamentos da cabeça. Lá embaixo, quando estiver valendo mesmo, será tudo um jogo mental, qualquer pensamento negativo e você põe tudo a perder. Mantive o foco, fiz a troca e seguimos.

     Parecia que dessa vez tinha dado certo. O pneu, meio murcho sim, mas não furado, dava sinais que não seria necessário me preocupar com ele novamente. Já o vento... continuava implacável. Era como se estivesse se deliciando ao castigar dois desaforados, que persistiam em uma peregrinação por ele proibida. Ainda bem que estava acompanhado. Se estivesse sozinho, talvez cedesse à pressão. Porém, era confortante olhar para o lado e ver que não estava sozinho. Havia ali mais um demente dando a cara à tapa e seguindo adiante. Senti-me contagiar novamente, reenergizar. Seguimos com o plano.

     Decidimos que pedalaríamos até Mogi e retornaríamos. Antes do retorno, uma parada no posto policial e mais uma inflada no fatídico pneu (não havia enchido o suficiente). Pegamos o retorno e então surgiu a pergunta: "E o vento, faria o retorno também?". Já experimentara tal situação, encarando ao longo de todo o percurso e, por isso preferi aguardar que apontássemos do outro lado da estrada para saber. E, como se penetrássemos em uma bolha, um túnel, um ambiente completamente fechado, o vento parou. Nem uma brisa, nada! Era como se recebêcemos uma bonificação por termos chegado ali.

     Mais que depressa, propus aumentarmos o ritmo. Não sabia o quanto duraria aquela calmaria, mas tinha certeza que deveríamos aproveitá-la ao máximo, percorrendo o maior trecho possível naquelas condições. Estávamos extasiados, ainda não acreditando em tamanha sorte que tivemos. O pior havia passado, a realidade era outra, o pedal fluía naturalmente. Até o céu parecia mudado, com um Sol tímido tentado se desvencilhar das nuvens. Definitivamente estávamos sendo agraciados!

     Em condições tão favoráveis não poderia ser diferente e, rapidamente, já havíamos percorrido metade do caminho de volta sem maiores problemas. Em meio a muitos aclives e declives que delineiam a região, e um tráfego leve, mas considerável de carros e caminhões, ouvi um estalo. Soou com um objeto metálico chocando-se com o chão. Estranhamente, tal ruído me pareceu familiar. Rapidamente levei a mão ao bolso da camisa e me dei conta que algo havia sumido: minha bomba. Semana passada esquecera-a em casa, o que me fez abortar o treino, hoje já havia necessitado de seus serviços por duas vezes. Não podia simplesmente deixá-la para trás. Fiz meia volta (quase terminando uma subida, Que dó...) e voltei à procura. O Luiz, que à essa altura já devia estar querendo me matar com tantas paradas (desculpe-me Luizão!!), ficou se entender nada, mas veio atrás. Fui até a base da "montanha" e nem sinal da bomba. Então, já em subida, percorrendo com os olhos todo o acostamento, como se mapeasse a área, visualizei o tal objeto metálico. Recoloquei-a no lugar e partimos, na esperança de só parar em Campinas.

     E assim fizemos os últimos 10 quilômetros de estrada, sem muitos problemas "naturais", com um ritmo aceitável e já nos aproximávamos do ponto de separação. A partir dali, cada uma par seu canto. Nos despedimos. Ele seguiria rumo ao Taquaral e eu pegaria a Dom Pedro. Peguei o acesso e, como se estivesse vivenciando um dejà vu, senti um solavanco contra a bike. Quem voltara para me acompanhar até o fim de minha jornada? Sim, o próprio. Sem perdão, e disposto a fazer dos meus últimos 7 quilômetros algo inesquecível, ele me empurrava para trás. Podia sentir suas mãos em meus ombros. Eu, já arqueado de tanto cansaço, remava para conseguir completar a última subida do dia.E pronto. Agora era descer. Descer com ou sem forças contrárias. Dali em diante não precisava mais me preocupar. Era só chegar em casa e daria fim a mais um treino. Sim, foram muitos percalços, forças da natureza pareceram empenhadas em desiludirmos. Era como se estivessem acomunadas com o diabinho da preguiça, construindo logo cedo o ambiente perfeito para uma bela amanhã sob os edredons. Mas faltando tão pouco tempo, qualquer pequeno obstáculo que conseguimos transpor, reflete de uma forma avassaladoramente positiva. Nos motiva, deixa-nos confiantes. O grande dia está chegando e, com ele, uma série de desafios e dificuldades. Mas também haverá muita diversão. E o melhor de tudo: em momento algum se estará sozinho.Quando alguém pensar em abaixar a cabeça, olhará para o lado e verá mais mil, novecentos e noventa e nove pessoas sofrendo junto. Poderá dali buscar inspiração, acreditar que consegue e continuar. É, realmente ninguém falou que iria ser fácil. Que venha o grande dia!