sábado, 7 de abril de 2012

Em cena


   A semana terminou de uma forma inusitada. Há alguns meses seguindo uma rotina que, aos olhos mundanos, chega a ser tediosa, tive, enfim, a oportunidade de sair completamente de minha zona de conforto e contemplar um mundo ao qual não estou tão familiarizado.

    Convidado pelo amigo Jorge Coli a seguir para São Paulo, onde acompanharíamos a peça Dom Juan (traduzida por ele!). Nada mais justo, pois dividi minhas garfadas do almoço com o discorrer do mesmo, mas nem por isso tinha-se um caráter obrigatório! Era um convite de bom grado. Eu aceitei.

      Chegamos ao Teatro Raul Cortês, pegamos nossas entradas e rumamos para a sala do espetáculo. Ainda tínhamos alguns minutos, mas, por ser membro da produção, o Jorge já adentrou à sala ao encontro do elenco. Eu, um pouco acanhado, exite por alguns instantes, mas acabei seguindo-o. Temia encontrar o desconhecido, me deparar com figuras populares, rostos que preenchem as noites das famílias e, sem aviso prévio, me alocar em um ambiente esnobe, ficar deslocado, ser apenas mais um.

    Pura covardia. Fomos recebidos calorosamente. Não era por estar com aquele que havia possibilitado (linguisticamente) o espetáculo. Aquele calor humano, os abraços sinceros, aqueles apertos de mão servidos com sorrisos harmoniosos, me fizeram perceber que habitava uma bolha de preconceitos. O desconhecido as vezes assusta e faz com que, por medo, criemos barreiras e preconceitos com o novo. Me vi cercado de seres humanos cheios de vida e prazer pelo que faziam, receptivos a novos contatos. A noite prometia.

    Nos acomodamos em nossas poltronas e esperamos o iniciar do espetáculo. Sabia como a história se encaminharia, mas estava ansioso para ver a parte artística da apresentação. Composta de um elenco fantástico, a peça conduzia o público sem brechas para pensamentos paralelos. Estávamos entorpecidos pelo clima, pela história, por um cenário que, jogando com efeitos de espelho e luzes, despertava um interesse quase que infantil, puro, capaz de reter sua atenção por algumas horas. Havia perdido a noção do tempo, me perdia entre o discorrer da história e as memórias das aulas de teatro no segundo grau (ah, isso ninguém sabia!!!).

       Fomos conduzidos por mais de duas horas de espetáculo. Já estava apaixonado por uma das atrizes que compunham o elenco: Clarissa Kiste. Meu Deus, que mulher. Nos camarins era apenas um belo rosto, exalando um cheiro suave, arrebatador, mais ainda assim humano. Porém, ao pisar no palco, detentora de uma presença imponente e uma voz grave, cheia de emoção, conseguiu irromper a zona de conforto em que nos encontrávamos. A partir daquele momento, tinha toda a atenção que necessitasse da platéia. 

    O espetáculo seguiu maravilhosamente, fazendo os que ali estavam se entretecem com o espetáculo, sem um momento de desconcentração, deixando-nos certos do valor e talento daqueles que habitavam o palco. Ao final, nada mais justo e esperado que uma salva de palmas de uma de sala de teatro lotada. Magnífico!

    Saímos para jantar com o elenco. Onde? Famiglia Mancini. De repente estava sentado à mesa com todo o elenco de uma peça de teatro, dentre eles inclusive, atores globais como Rodrigo Lombardi e Eduardo Estrela. Àquela altura já não existia uma barreira entre nós. Na verdade, estava encantado com a forma que tratavam todos aqueles que vinham parabenizá-los. Eram de um carinho e atenção invejáveis. Valorizavam o feedback ali presente, sabem que é o que mantém o espetáculo grandioso.

      Foi então que ela, clara, claríssima, Clarissa, começou a discorrer sobre os desafios do ator. Falava sobre o mínimo desconforto causado pela fixação do texto (aos olhos do público, o ponto mais difícil) e a complexidade de se encontrar ali, exposto, brincando com a realidade, tendo que dar continuidade ao espetáculo de peito aberto. Contava-nos sobre os pensamentos paralelos que surgem ao longo do peça, ela e Rodrigo riam sobre as linhas de raciocínio paralelas que surgem enquanto atuam. "O que vou falar daqui alguns minutos?"," Tem uma maça no canto direito do palco", "Tenho que chorar quando ela fizer tal sinal". Falta de concentração? Juram que não. Apenas uma nível de concentração tão elevado, que conseguem atuar e prever movimentos futuros. Embriagava-nos com suas histórias fascinantes, em meio a um belo sorriso e um piscar maroto, delicioso, do olho esquerdo. E então ela falou: " O mais legal é que, quando abre-se as cortinas, não tem mais volta. Dali, só para frente!". 

    Estasiado com tal frase, tracei um paralelo imediato com o esporte: quando estamos comprometidos com uma prova, ou mesmo na execução de uma, temos a consciência de não ter mais volta. Podemos desistir? Sim, mas nunca recuperar os dias de treino, os quilômetros nadados, pedalados, corridos. Ao soar da buzina, corre-se para frente, é de peito aperto que nos atiramos ao mar. Ela explicava como raciocinam em cima de uma fala que está por vir enquanto atuam. Eu pensava em como, em meio a mais de cem quilômetros de bike, refletimos sobre a corrida que está por vir. Ela sobre uma palavra que às vezes insisti em travar a língua, uma cena com uma exigência maior. Eu sobre os primeiros quilômetros de corrida, sobre a barreira dos 36 km. Sabemos que, a partir daquele instante, do terceiro sinal, do som alucinante da buzina, apenas a linha de chegada, o cerrar das cortinas são merecedoras de nossa parada.

      Em meio a uma garfada na bela fulgazza que preenchia meu prato e um gole de vinho, tal semelhança entre realidades tão diferentes me encantava. Chegava à conclusão que o teatro e o esporte são intimamento próximos. Oscilam entre o lazer e a profissão, encantam multidões e, para aqueles que estão diretamente envolvidos, não deixam muitas opções: é conduzir, cada uma ao seu modo até o fim ou desistir. Fazendo uso de um jargão, dava fim a tal analogia: a vida imita a arte!

      Após tamanha reflexão, o triathlon entrou como assunto à mesa e encontrei em Eduardo Estrela um entusiasta. Detentor de uma visão empreendedora, uma clareza de idéias e de falas, iniciamos uma conversa sobre uma modalidade específica e, antes da segunda taça de vinho, já perambulávamos  por políticas públicas, formas sustentáveis de desenvolvimento do esporte e cultura e, claro, o senhor Walter Mancini. Tínhamos idéias e ideais muito parecidos. A conversa fluía tão espontaneamente que, sem perceber, já o chamava de Du. Íntimo! Após ficar estarrecido com tamanho talento dramatúrgico, agora despertava uma admiração ideológica. Sentava-se a minha frente alguém realmente interessante, esclarecida, e melhor, boa de papo!

     Passava de 3 horas da manhã quando pedimos a conta, nos despedimos de todos e, um a um, tomamos nossos rumos. Jorge e eu, claro, não poderíamos ter uma volta normal. Antes de pegarmos a estrada, fomos parados por uma blitz e me submeteram ao teste do bafômetro. Estava tão bem que até o guarda me aconselhou mais uma taça de vinho! Cheguei em casa quase cinco da manhã, cansado dos treinos, mas com a mente fervilhando mediante experiência extraordinária que acabara de vivenciar. Difícil fazer tantas emoções aquietarem e cair no sono. Porém se fazia necessário, uma vez que tinha treino de natação às 8 horas ada manhã. E, tomado por uma cansaço físico descomunal e uma bombardeio de pensamentos e emoções, encostei minha cabeça no travesseiro e dormi.

     Fica apenas a dica para aqueles que foram em São Paulo e região: troquem uma noite de balada e assistam à peça Dom Juan de Molière. Não sei se vocês conseguirão o jantar pós espetáculo, mas garanto que se encantarão com o espetáculo e, para aqueles que estiverem mais dispostos, poderão conversar prazerosamente com todos do elenco e tirar fotos  após o encerramento.

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