domingo, 15 de abril de 2012

Fase de teste


     Ainda lembro como surgiu em minha vida. Coisa de segundo grau, encaminhando para prestar um vestibular, hora de começar a testar os conhecimentos de uma outra forma. Não eram mais as provinhas de cada matéria, feita em horário de aula, agora o método seria o mesmo com o qual nos depararíamos logo à frente. Marcado em horário especial, geralmente sábado, englobaria todas as matérias da grade e seria repleto de itens que deveriam ser julgados verdadeiros ou falsos. Ocupava um período de um dia e era chamado simulado. Basicamente é onde somos colocados à prova, testamos nossos conhecimentos, vemos onde estamos fracos, em que conseguimos progredir, enfim, é a hora em que podemos errar, falhar e melhorar.

     Pois bem, alguns anos depois me deparo com mais um simulado. De triathlon sim, mas não menos duradouro do que os acadêmicos e, claro, sempre em um sábado ensolarado. Ossos do ofício. Seria a oportunidade de aplicarmos tudo que viemos treinando, sentir o swim.bike.run da devida maneira, experimentarmos algum incremento, descobrir falhas, avaliarmos como realmente estamos para o grande dia.

     O planejamento era simples: 2000 metros de natação, 4 horas de pedal e 2 horas de corrida. Olhando o planejamento já se tem noção da extensão da brincadeira, mas a jornada para um treino desses começa bem antes.

     Vinte para cinco da manhã, pleno sábado, sou abruptamente agredido pelo despertar de meu celular que, como se em meio a um ataque de fúria, emite gritos pelo quarto e desvencilha-se de minhas mãos que, cegamente, tentam silenciá-lo pelo bem maior. Após alguns minutos, já recuperado do susto, me levanto e parto para o primeiro café da manhã do dia. A parte estrutural já está toda organizada. Sabiamente já havia feito a checagem na bike, separa todos os utensílios de cada modalidade, organizando-os por ordem de retirada da mochila, preparado a parte suplementar, alimentar e de hidratação, restando-me para a manhã apenas o café da manhã, a troca de roupa e a partida. Marcinho (meu técnico) marcará às 5:30 e já às 5:28 hs estava estacionado na porta de casa. Carregamos o carro e partimos. Pausa para recolher o restante da galera participante e pé na estrada. Destino final: Represa de Nazaré.

     Pegar carona com o Marcinho vem se mostrado uma oportunidade única para boas risadas. Em meio a assuntos técnicos ou um pouco mais sérios, sempre caímos em uma piada e as gargalhadas são garantidas. Faz com que o tempo passe rápido e, sem muito esforço, nos vemos estacionando no local combinado. Uma singela confraternização entre os presentes, montagem das bicicletas, equipamentos para transição, roupa de neoprene já no corpo, últimas recomendações sobre o funcionamento do simulado, pé na água, óculos nos olhos, largamos.

     A natação, por incrível que pareça, vem sendo a parte prazerosa de se fazer. Ainda sabendo se tratar de uma competição, o estar horizontalizado, cercado de tantas pessoas e ao mesmo tempo sozinho em  pensamentos, ritmados apenas pelo som da inquietação da água, vendo trazendo uma sensação de paz indescritível. Relembrando o drama das primeiras piscinas, do medo da modalidade e a desconfiança nos 3800 metros, é possível ver o resultado de tanto esforço ao longo dos últimos meses. Envolto em tão bons pensamentos, concluímos a trecho d'água em 30 minutos. Marcinho sustentava o deck para uma melhor saída. Falei meu tempo para ele e parti para a transição. Ali nos despedíamos. A parte terrestre seria por conta própria.

     Já na transição, um dos participantes orquestrava um pequeno escândalo por não ter água disponível para que enchesse sua caramanhola. "Quando for assim, avisa que a gente traz de casa". Santa inocência! O rapaz já está a algum tempo no meio e sai de casa sem água? Inadmissível! Sou novo na modalidade, mas meu jeito metódico facilita muito a organização de um evento assim. Saiu de casa com um isopor, onde levo água, gatorade, suco, comidas... uma "farofa"! Fácil zoar, mas nunca passo fome ou sede e ainda me dou ao luxo de, se quiser, reclamar ao final do evento! Deixei o pequeno com síndrome de "estrela" falando sozinho, peguei minha bike e parti.

     Seriam 4 voltas de 30 km. Estávamos em quatro: Sérgio e eu puxávamos e os outros dois vinham atrás. Minha proposta era ficar de cara para o vento, remar sozinho, sem colar na roda. Ficava a observar os demais com equipamentos de primeira linha, escondidos atrás, apenas aproveitando o vácuo. "Beleza, vão dar o bote no final" pensei. Estava em fase e experimento: era a primeira vez que levava comida para o treino. Fatias de pão integral embebidas em mel... néctar dos Deuses. Como isso é capaz de dar prazer quando se está sob duras penas. Seguimos. Duas voltas e nada. Pararam para reidratar (acho) e eu continuei. Agora, sozinho, sabia que poderia administrar melhor: iria puxar a terceira volta e soltar na quarta para correr descansado. Apertei, já sem ninguém à frente, fiz o retorno e observei que já abrira uma vantagem de alguns 8 km. Abria a quarta volta e, revezando entre fatias de pão, géis e barras de proteína, entreguei a bike com 3 horas e 46 minutos. Comecei a troca e, em pouco mais de 2 minutos, saía para correr. Sabia que tinha meia hora a mais de corrida que todos ali, então era interessante ter aberto vantagem.

     À essa altura já passávamos de meio dia e o amigo Sol castigava bravamente aqueles que permaneciam em pé. Saí muito bem pra correr: passo curto, ritmo controlado, frequência baixa, tudo como manda o figurino. Primeira grande falha: levei apenas uma garrafa de isotônico. Antes de 3 km de corrida já havia secado a mesma e, o que a princípio, seria uma corrida de 10km + 10 km, tornou-se uma de 5km + 5 km para reidratar. Dez quilômetros em 58 minutos, com direito a chuva e tudo, enchi uma caramanhola e parti para mais 10 km, mas dessa vez em meio à mata que circunda a represa. Segundo erro.

     Correr em trilha é diferente, as exigências são outras, os reflexos também, o impacto na musculatura então... Adentrei a mata, chão de terra, lameado pela chuva recente, exigia uma atenção maior. Correr tendo a represa ao lado, respirando um ar mais puro, proporcionava um prazer momentâneo de primeira qualidade. Subia descia, curva para direita, curva para esquerda, subia de novo... olhei no GPS: 1,5 km. Parecia já ter corrido por mais de trinta minutos, minha água já se misturava ao fundo da garrafa. Tive a nítida sensação que  o tempo e a distância não respondiam ali da mesma forma que estamos acostumados. Continuei correndo. Queria fazer 5 km e voltar, fechando assim meu treino. Rodei, rodei, rodei, olhei o GPS: 2 km. Pronto, era pegadinha! Parecia, ao adentrar ali, ter assinado um pacto com o diabo, cheio de prazeres momentâneos, mas com conteúdos nas entrelinhas que o fariam arrepender de tal decisão. Havia sido enganado. Estava sozinho, no meio do nada e, por mais que corresse, insistiam em me dizer que não me deslocara o quanto imaginava. Prevendo a segunda escassez de água do dia, retornei com 2,68 km. Passei pela tenda de apoio, recarreguei-me de água, bebi um copo de malto e fui. Dessa vez voltaria para o asfalto, pois já conhecia o percurso.

     Foi como se tivesse irritado o "coisa ruim". Sentindo-se enganado pelo meu retorno antecipado na mata, resolvera dar as caras. Ao sair para a estrada, foi como se corresse em um tapete de lava. Um Sol escaldante sumira com todas as nuvens de chuva que até bem pouco tempo encobriam o lugar. Sentia a sola do pé esquentando, o corpo entrava em processo de cozimento. Com o planejamento de fazer apenas 3 km e retornar, percebia que talvez as coisas saíssem do controle.

     Disputando gota a gota com o calor, tentava me manter hidratado. Me sentia lesado vendo meu volume d'água diminuir e minha sede aumentar. Repetia para mim mesmo que retornaria com 18 km, tentando manter-me motivado, mas a essa altura me encontrava, já para mais de uma da tarde, correndo sozinho em uma rodovia e em péssimas condições climáticas. Não que estivesse cansado, mas percebia ali um desgaste desnecessário para o momento. "Se estivesse valendo, correria 18 km?". Sim, correria até os 42 km se fosse o dia, mas não daquele jeito. Já beirava as 6 horas propostas de bike.run, estava fisicamente confortável, achei melhor retornar. Com 16,5 km regressei à base. Corri até o quilômetro 18, bebi minha última gota de água e caminhei os tão santos 5 minutos.

     Cheguei na tenda, todos já haviam encerrado suas sessões. Peguei meu isopor, fiz toda a parte suplementar planejada, passei na tenda para beber (mais) água. Cada gole um "ahhhh". Que delícia, que saudade... deliciava-me com o momento, revezando entre um copo de malto geladíssima, água, frutas e petiscos. Ingeria tudo que a mão alcançasse à mesa e, por longos 10 minutos, permaneci ali. Sepultada a fome, sem mais demora, parti para aquela que tornara-se objeto de desejo nas últimas 6 horas. Desci a rampa e, sem muito pensar, me entreguei aos encantos de uma água verde esmeralda encantadora. Acolhido tão bem às 8 da manhã, tinha certeza que me receberia de braços abertos. Deixei-me relaxar, como a sensação de dever cumprido, certo de ter realizado bons trechos ao longo do dia, confiante com as próximas semanas de treino, feliz por perceber que todo o tempo e esforço até aqui investidos nessa empreitada, parecer estar dando resultado. Pude mergulhar de cabeça e me reconfortar no silêncio regido pelas profundezas daquelas águas. Era o fim de mais um dia de trabalho.

Links dos percursos:

CICLISMO: http://connect.garmin.com/activity/168612769

CORRIDA: http://connect.garmin.com/activity/168612777
     

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