domingo, 29 de abril de 2012

Tropa de Elite



     Era para ser apenas mai um sábado ensolarado, porém o dia 28 de abril já começava com um ar diferente. Entrávamos na contagem dos trinta. A partir dali seriam trinta dias até o Ironman. Uma pressão gostosa de se conviver quando as metas envolvidas estão envoltas em prazer. Para enaltecer ainda mais a data, tínhamos um treino diferente, especial: a equipe iria treinar no velódromo de Americana.

    Para alguns apenas mais um treino ali, para outros tudo novo. Pedalar em um espaço próprio, técnico, específico para ciclismo era empolgante. Não saíra de casa esperando entrar em um ginásio fechado, com uma pista montada com tecnologia de ponta. Sabia que caminhava para a realidade brasileira e não me surpreendi ao me deparar com um concreto, arduamente liso, mas com algumas pequenas rachaduras, ditando o caminho, delineado por faixas desbotadas, fruto da dualidade Sol e chuva. Ainda sim a adrenalina continuava alta. Iria experimentar o brinquedo novo, após os ajustes técnicos, pedalaria com boa parte da equipe e, após uma breve olhada na programação do dia, ficara claro que o trabalho renderia.

     Enfileirados, como se estivéssemos em um desfile de apresentação, um a um descemos para pista. Cada um conduzia ao lado trazíamos ela, o centro das atenções, o objeto de desejo e admiração, as estrelas do show, máquinas que fazem de nós meros coadjuvantes. Realmente estávamos muito bem amparados no quesito bicicletas. Uma breve explanação do nosso técnico Marcinho e chegara a hora dos cavaleiros montarem aqueles puro sangue e começarmos a trabalhar.

     Iniciamos com um aquecimento de 20 minutos. Estava literalmente no zero: em processo de adaptação com a bike, em um espaço totalmente desconhecido, quase elíptico e, o que era pior, com desnível em curvas. Pedalar ali era retomar os primórdios de minha vida acadêmica. Estava a colocar à prova alguns conceitos físicos até então muito mais teóricos do que práticos. Falar de força centrípeta dentro de um veículo é moleza, duro é senti-la em uma curva de 180 graus, onde a sua bike é arremessada em uma rampa de uma altura assustadora. Entra então o segundo teste: força de atrito. Como acreditar que conseguiria escalar aquela parede sem despencar lá de cima? Melhor frear! E em meio ao bombardeio de informações do momento, nos reunimos para iniciarmos o treinamento propriamente dito.

     Série 1: duas voltas + um tiro de 200 metros. As duas voltas seria para ganhar giro, velocidade e os últimos duzentos metros deveriam ser feitos na máxima velocidade. Já fui lá para trás da fila. Primeiro queria vê-los em ação, tentar aprender algumas técnicas, ganhar confiança (ou não!), enfim, enquanto pudesse, esperaria. E as voltas começaram. Alguns se mostravam familiarizados com o espaço, outros pareciam travados, formas diferentes de se fazer o teste. Resumindo, seria do meu jeito. E fui.

     Aproveitei bem as duas voltas. Tentava achar a marcha que faria, se cliparia ou não, como procederia no momento exato. Preferi não clipar, pois não estava à vontade para passar forte e fechado na curva. Achei mais prudente segurar no guidão e deitar-me na bike. Abri os 200 metros forte, fiz a curva e finalizei. O tempo? Não sei. Juro! Esqueci de perguntar, mas isso não era o importante. Sabia não ter feito grande coisa. Fomos confrontados sobre a sensação do teste, que achou ter feito o melhor, quem perdeu potência no final, quem achava que poderia fazer mais. Quase nenhum de nós estava contente. Entrou o personagem do técnico. Explicando a forma correta de se fazer o teste, a importância do giro do pedal, a necessidade de se usar a rampa. Sim, deveríamos em um dado momento jogarmos a bike no ponto mais alto e atacar de lá a largada. Mais física no dia! Era óbvio que sairíamos mais veloz assim. "Quem quer tentar outro tiro?" disse Márcio. "Eu não" pensei. Dois foram: Marcelo Filé e Murilo Barizon (o "gringo de Itapira"). O doutor Murilo mostrou ter absorvido os ensinamento brilhantemente: fez suas duas voltas de aquecimento e, antes de abrir o tiro, subiu muito alto com sua bike e, tendo a performance sendo narrada a nós pelo Márcio, conseguíamos captar os mínimos detalhes daquela volta que beirava a perfeição. Resultado: melhor tempo do dia. Hora de irmos para a segunda série.

     Série 2: iríamos rodar em dupla, com velocidade pré determinada, revezando a "cabeça" a cada volta. Um exercício para aprendermos, mais que andar na roda, a nos comportarmos em grupo, sabendo aproximarmos e recuarmos sem adentrar nos espaços laterais, comprometendo outros companheiros de treino e competidores. Série simples e sem muita emoção.

     Chegado a grande momento. A série 3 era composta por um contra relógio de 30 minutos, individual, sem vácuo, onde daríamos o máximo. Já tínhamos uma hora de treino, o velódromo não era mais um ser estranho para mim, a física ali presente estava compreendida e sentia-me bem para fazer uma boa volta. Cada um marcando seu tempo, partimos. 

     Sem o ciclocomputador o treino todo e com meu Garmin em uma posição desfavorável de se ver, percebi que não saberia com quanto de média estava rodando. Fiz a primeira volta, a segunda e então fui ultrapassado. "Bora playboy", disse o Donga. "Oh loko, aí não". Apertei um pouco o ritmo. Sabia que estava aquém do que podia render, mas não queria forçar muito. Encaixei um bom ritmo e, sem muito esforço, comecei as ultrapassagens. Sempre que podia entrava na rampa e me jogava de lá. Delícia! O que já estava rápido, aumentava! E assim fui tocando quando, sem demonstrar nenhuma feição de esforço, vejo o Dedé passando ao meu lado. "Puta alemaozinho forte!". A essa altura já estava rodando a 40 km/h e o rapazinho nem tomou conhecimento. Continuei forte, peguei o Donga, paguei a volta e então de novo. Mais uma do Dedé. "Não é possível!". Já dera 3 voltas em alguns, 2 em outros e, quase acabando o treino, tomei outra volta do Dedé. O pior era vê-lo com a mesma cara de quando começamos o aquecimento pela manhã. Simplesmente não demostrava cansaço. 
     Fechamos a série, fizemos um soltinho de 10 minutos e encostamos as bikes. Era hora de recarregarmos. Reposição hídrica, suplementar, o coach parabenizando todo mundo, dei uma checada no Garmin para saber da média. Chocado, vi que tinha colocado 38,6 km/h no total e de uma forma controlada. Um resultado espetacular para mim. A molecadinha veio comentar e tudo. Legal ver que estamos progredindo! Me meio à conversa fiada, chamada de leve do Marcinho para a última parte do treino: a corrida. Trinta minutos (interno ou externo). 
     Dedé, Donga, Dr. Muru e eu optamos por desbravar a cidade de Americana.Óbvio que correndo com esse tipo de gente, a corrida não seria moleza. Dois a dois seguíamos pelas ruas da cidade, em meio a carros e pedestres, atravessando ruas e pontes, em um ritmo alucinante. Bateu a curiosidade e resolvi consultar o pace que estávamos. Um susto ao ver que rodávamos a 4:20 por km. Era bronca na certa do Marcinho! Fazer o quê? Agora era acompanhar e finalizar o treino. Fizemos 15 minutos pela cidade, voltamos para o velódromo e acabamos, já em um ritmo mais tranquilo, por lá.

     Fim do treino, início de mais um ciclo. Um dia bem motivante, cheio de boas notícias, bons resultados. Agora é completar o programa de treinamento e partir pra Florianópolis. Arrumamos nossas coisas e cada um deu seguimento ao seu feriado. Missão cumprida. Era hora do bando se separar. Até a próxima missão!


     

domingo, 15 de abril de 2012

Fase de teste


     Ainda lembro como surgiu em minha vida. Coisa de segundo grau, encaminhando para prestar um vestibular, hora de começar a testar os conhecimentos de uma outra forma. Não eram mais as provinhas de cada matéria, feita em horário de aula, agora o método seria o mesmo com o qual nos depararíamos logo à frente. Marcado em horário especial, geralmente sábado, englobaria todas as matérias da grade e seria repleto de itens que deveriam ser julgados verdadeiros ou falsos. Ocupava um período de um dia e era chamado simulado. Basicamente é onde somos colocados à prova, testamos nossos conhecimentos, vemos onde estamos fracos, em que conseguimos progredir, enfim, é a hora em que podemos errar, falhar e melhorar.

     Pois bem, alguns anos depois me deparo com mais um simulado. De triathlon sim, mas não menos duradouro do que os acadêmicos e, claro, sempre em um sábado ensolarado. Ossos do ofício. Seria a oportunidade de aplicarmos tudo que viemos treinando, sentir o swim.bike.run da devida maneira, experimentarmos algum incremento, descobrir falhas, avaliarmos como realmente estamos para o grande dia.

     O planejamento era simples: 2000 metros de natação, 4 horas de pedal e 2 horas de corrida. Olhando o planejamento já se tem noção da extensão da brincadeira, mas a jornada para um treino desses começa bem antes.

     Vinte para cinco da manhã, pleno sábado, sou abruptamente agredido pelo despertar de meu celular que, como se em meio a um ataque de fúria, emite gritos pelo quarto e desvencilha-se de minhas mãos que, cegamente, tentam silenciá-lo pelo bem maior. Após alguns minutos, já recuperado do susto, me levanto e parto para o primeiro café da manhã do dia. A parte estrutural já está toda organizada. Sabiamente já havia feito a checagem na bike, separa todos os utensílios de cada modalidade, organizando-os por ordem de retirada da mochila, preparado a parte suplementar, alimentar e de hidratação, restando-me para a manhã apenas o café da manhã, a troca de roupa e a partida. Marcinho (meu técnico) marcará às 5:30 e já às 5:28 hs estava estacionado na porta de casa. Carregamos o carro e partimos. Pausa para recolher o restante da galera participante e pé na estrada. Destino final: Represa de Nazaré.

     Pegar carona com o Marcinho vem se mostrado uma oportunidade única para boas risadas. Em meio a assuntos técnicos ou um pouco mais sérios, sempre caímos em uma piada e as gargalhadas são garantidas. Faz com que o tempo passe rápido e, sem muito esforço, nos vemos estacionando no local combinado. Uma singela confraternização entre os presentes, montagem das bicicletas, equipamentos para transição, roupa de neoprene já no corpo, últimas recomendações sobre o funcionamento do simulado, pé na água, óculos nos olhos, largamos.

     A natação, por incrível que pareça, vem sendo a parte prazerosa de se fazer. Ainda sabendo se tratar de uma competição, o estar horizontalizado, cercado de tantas pessoas e ao mesmo tempo sozinho em  pensamentos, ritmados apenas pelo som da inquietação da água, vendo trazendo uma sensação de paz indescritível. Relembrando o drama das primeiras piscinas, do medo da modalidade e a desconfiança nos 3800 metros, é possível ver o resultado de tanto esforço ao longo dos últimos meses. Envolto em tão bons pensamentos, concluímos a trecho d'água em 30 minutos. Marcinho sustentava o deck para uma melhor saída. Falei meu tempo para ele e parti para a transição. Ali nos despedíamos. A parte terrestre seria por conta própria.

     Já na transição, um dos participantes orquestrava um pequeno escândalo por não ter água disponível para que enchesse sua caramanhola. "Quando for assim, avisa que a gente traz de casa". Santa inocência! O rapaz já está a algum tempo no meio e sai de casa sem água? Inadmissível! Sou novo na modalidade, mas meu jeito metódico facilita muito a organização de um evento assim. Saiu de casa com um isopor, onde levo água, gatorade, suco, comidas... uma "farofa"! Fácil zoar, mas nunca passo fome ou sede e ainda me dou ao luxo de, se quiser, reclamar ao final do evento! Deixei o pequeno com síndrome de "estrela" falando sozinho, peguei minha bike e parti.

     Seriam 4 voltas de 30 km. Estávamos em quatro: Sérgio e eu puxávamos e os outros dois vinham atrás. Minha proposta era ficar de cara para o vento, remar sozinho, sem colar na roda. Ficava a observar os demais com equipamentos de primeira linha, escondidos atrás, apenas aproveitando o vácuo. "Beleza, vão dar o bote no final" pensei. Estava em fase e experimento: era a primeira vez que levava comida para o treino. Fatias de pão integral embebidas em mel... néctar dos Deuses. Como isso é capaz de dar prazer quando se está sob duras penas. Seguimos. Duas voltas e nada. Pararam para reidratar (acho) e eu continuei. Agora, sozinho, sabia que poderia administrar melhor: iria puxar a terceira volta e soltar na quarta para correr descansado. Apertei, já sem ninguém à frente, fiz o retorno e observei que já abrira uma vantagem de alguns 8 km. Abria a quarta volta e, revezando entre fatias de pão, géis e barras de proteína, entreguei a bike com 3 horas e 46 minutos. Comecei a troca e, em pouco mais de 2 minutos, saía para correr. Sabia que tinha meia hora a mais de corrida que todos ali, então era interessante ter aberto vantagem.

     À essa altura já passávamos de meio dia e o amigo Sol castigava bravamente aqueles que permaneciam em pé. Saí muito bem pra correr: passo curto, ritmo controlado, frequência baixa, tudo como manda o figurino. Primeira grande falha: levei apenas uma garrafa de isotônico. Antes de 3 km de corrida já havia secado a mesma e, o que a princípio, seria uma corrida de 10km + 10 km, tornou-se uma de 5km + 5 km para reidratar. Dez quilômetros em 58 minutos, com direito a chuva e tudo, enchi uma caramanhola e parti para mais 10 km, mas dessa vez em meio à mata que circunda a represa. Segundo erro.

     Correr em trilha é diferente, as exigências são outras, os reflexos também, o impacto na musculatura então... Adentrei a mata, chão de terra, lameado pela chuva recente, exigia uma atenção maior. Correr tendo a represa ao lado, respirando um ar mais puro, proporcionava um prazer momentâneo de primeira qualidade. Subia descia, curva para direita, curva para esquerda, subia de novo... olhei no GPS: 1,5 km. Parecia já ter corrido por mais de trinta minutos, minha água já se misturava ao fundo da garrafa. Tive a nítida sensação que  o tempo e a distância não respondiam ali da mesma forma que estamos acostumados. Continuei correndo. Queria fazer 5 km e voltar, fechando assim meu treino. Rodei, rodei, rodei, olhei o GPS: 2 km. Pronto, era pegadinha! Parecia, ao adentrar ali, ter assinado um pacto com o diabo, cheio de prazeres momentâneos, mas com conteúdos nas entrelinhas que o fariam arrepender de tal decisão. Havia sido enganado. Estava sozinho, no meio do nada e, por mais que corresse, insistiam em me dizer que não me deslocara o quanto imaginava. Prevendo a segunda escassez de água do dia, retornei com 2,68 km. Passei pela tenda de apoio, recarreguei-me de água, bebi um copo de malto e fui. Dessa vez voltaria para o asfalto, pois já conhecia o percurso.

     Foi como se tivesse irritado o "coisa ruim". Sentindo-se enganado pelo meu retorno antecipado na mata, resolvera dar as caras. Ao sair para a estrada, foi como se corresse em um tapete de lava. Um Sol escaldante sumira com todas as nuvens de chuva que até bem pouco tempo encobriam o lugar. Sentia a sola do pé esquentando, o corpo entrava em processo de cozimento. Com o planejamento de fazer apenas 3 km e retornar, percebia que talvez as coisas saíssem do controle.

     Disputando gota a gota com o calor, tentava me manter hidratado. Me sentia lesado vendo meu volume d'água diminuir e minha sede aumentar. Repetia para mim mesmo que retornaria com 18 km, tentando manter-me motivado, mas a essa altura me encontrava, já para mais de uma da tarde, correndo sozinho em uma rodovia e em péssimas condições climáticas. Não que estivesse cansado, mas percebia ali um desgaste desnecessário para o momento. "Se estivesse valendo, correria 18 km?". Sim, correria até os 42 km se fosse o dia, mas não daquele jeito. Já beirava as 6 horas propostas de bike.run, estava fisicamente confortável, achei melhor retornar. Com 16,5 km regressei à base. Corri até o quilômetro 18, bebi minha última gota de água e caminhei os tão santos 5 minutos.

     Cheguei na tenda, todos já haviam encerrado suas sessões. Peguei meu isopor, fiz toda a parte suplementar planejada, passei na tenda para beber (mais) água. Cada gole um "ahhhh". Que delícia, que saudade... deliciava-me com o momento, revezando entre um copo de malto geladíssima, água, frutas e petiscos. Ingeria tudo que a mão alcançasse à mesa e, por longos 10 minutos, permaneci ali. Sepultada a fome, sem mais demora, parti para aquela que tornara-se objeto de desejo nas últimas 6 horas. Desci a rampa e, sem muito pensar, me entreguei aos encantos de uma água verde esmeralda encantadora. Acolhido tão bem às 8 da manhã, tinha certeza que me receberia de braços abertos. Deixei-me relaxar, como a sensação de dever cumprido, certo de ter realizado bons trechos ao longo do dia, confiante com as próximas semanas de treino, feliz por perceber que todo o tempo e esforço até aqui investidos nessa empreitada, parecer estar dando resultado. Pude mergulhar de cabeça e me reconfortar no silêncio regido pelas profundezas daquelas águas. Era o fim de mais um dia de trabalho.

Links dos percursos:

CICLISMO: http://connect.garmin.com/activity/168612769

CORRIDA: http://connect.garmin.com/activity/168612777
     

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Jogos Mentais


 
    "Para estar em guerra, basta ter nascido" (Jürgen Habermas)

    O conflito sempre estará presente. As dificuldades parecem brotar do chão por onde traçamos nosso caminho. Tentam desviar-nos, fazer-nos parar, voltar ao ponto de partida, desistir. A mente humana é complexa, cheia de artimanhas, quase como uma simbiose, repleta de energia, de vontade própria e, se não bem controlada, capaz de dominar a situação e te fazer perder o juízo.

    Ainda como estudante de Educação Física, a psicologia do esporte atraía minha atenção. Fazia brilhar os olhos a muito opacos pelo bombardeio de assuntos morosos. Via ali a chave para o sucesso desportivo, superando preparação física, genética e outros fatores estimados como decisivos para o bom desempenho. Inseri minhas convicções ao meu cotidiano: enquanto técnico de futsal, defendia meus treinos ao meio dia. O Sol escaldante fazia com que a quadra parecesse um rio de lava, pequenos trotes parecia corridas sem fim, mas, quando íamos jogar em horários amenos, não demonstrávamos cansaço, não sentíamos calor, corríamos mais, marcávamos mais, jogávamos mais! A mesma "fórmula" era aplicada aos meus treinos de corrida: buscava sempre correr na hora do almoço, fazer treinos de rampa exaustivos, conhecer o extremo. Ali era o momento de reclamar, de querer parar, de brigar contra meus desejos mais mundanos. Gladiava para obter a vitória. Tinha que ser forte para não ceder às clemências de minha mente. "Por que isso? Chega, vamos para casa!". Correr quinze, vinte quilômetros em uma pista de 400 metros me ensinou a controlar meus impulsos. Antes, sempre muito impaciente, ao primeiro sinal de cansaço, os piores pensamentos nasciam em mim e, sentindo minhas fraquezas, minha cabeça tomava o controle da situação, se apossando de meu corpo e acabando por me derrotar. Agora, volta a volta era possível perceber tal fragilidade desabrochar e contorná-la a tempo. Tornava-me senhor de meus anseios.

    Com minha ida para o triathlon, o ingresso no mundo Ironman, as exigências são outras, o volume de treino também, o grau de dificuldade aumentou e, com isso, a vulnerabilidade. O que fazer quando, em meio a tantas sessões de treino, ainda se tem uma dieta a seguir. Rígida, exata, sem excessos, pouquíssimo chocolate, quase nenhuma cerveja, quantidades certas de alimento. Contar oito uvas? Muito pra minha cabeça! E, como se voltasse a ser criança, o proibido passa a ser objeto de desejo. É sempre assim: a homem sempre quer o que não lhe pertence. A ciência já comprovou o desentendimento pelo "não". "Não faça isso", "não suba aí". São informações descabidas de significado aos menores.Surge então aquela sede de não uma, mas 6 cervejas. Pode? "Não!" Aquele desejo de mastigar uma bela barra de chocolate. Pode? "Não!" Apenas 30 gramas. Isso é um sexto da barra! Não dá nem para salivar. O que fazer então?

    Para controlar todo o meu descontrole alimentar, resolvi, simplesmente, comprar tudo que eu sempre tenho vontade de consumir. "Como assim, chutar o balde?". Não, comprar e deixar à mostra. Chego, abro a geladeira e vejo uma barra de chocolate. "Muito fácil, não quero". Como um truque de ilusionismo, engano minha mente e mantenho-me com o planejamento alimentar adequado. Loucura? Talvez, mas vem funcionando muito bem.

     E a parte do treinamento? Fazendo-os sempre em horários mais amenos, sem exposição ao Sol. O problema é que no grande dia, Ele estará lá assistindo de camarote. Me fará companhia por quase doze horas. Hora de quebrar o gelo: o ciclismo agora é feito um pouco mais tarde, por volta de 8 horas. A corrida então, mais grave ainda. Ontem foram 30 km, saindo de casa ao meio dia. Sob um calor insuportável trotamos por quase três horas Campinas afora. Mais que a forma física, estamos recuperando a forma mental. Agora é a hora de termos maus pensamentos, de fraquejar, e de passar por cima de tudo isso. Para o grande dia reserva-se apenas bons momentos. Vai doer? Sim. Vai estar quente? Opa! Vou sofrer? Muito, mas nada que não tenha passado anteriormente. Lá, a única novidade permitida será o prazer de completar meu primeiro Ironman. Apenas 48 dias nos separam deste momento. Que passem logo!
    

sábado, 7 de abril de 2012

Em cena


   A semana terminou de uma forma inusitada. Há alguns meses seguindo uma rotina que, aos olhos mundanos, chega a ser tediosa, tive, enfim, a oportunidade de sair completamente de minha zona de conforto e contemplar um mundo ao qual não estou tão familiarizado.

    Convidado pelo amigo Jorge Coli a seguir para São Paulo, onde acompanharíamos a peça Dom Juan (traduzida por ele!). Nada mais justo, pois dividi minhas garfadas do almoço com o discorrer do mesmo, mas nem por isso tinha-se um caráter obrigatório! Era um convite de bom grado. Eu aceitei.

      Chegamos ao Teatro Raul Cortês, pegamos nossas entradas e rumamos para a sala do espetáculo. Ainda tínhamos alguns minutos, mas, por ser membro da produção, o Jorge já adentrou à sala ao encontro do elenco. Eu, um pouco acanhado, exite por alguns instantes, mas acabei seguindo-o. Temia encontrar o desconhecido, me deparar com figuras populares, rostos que preenchem as noites das famílias e, sem aviso prévio, me alocar em um ambiente esnobe, ficar deslocado, ser apenas mais um.

    Pura covardia. Fomos recebidos calorosamente. Não era por estar com aquele que havia possibilitado (linguisticamente) o espetáculo. Aquele calor humano, os abraços sinceros, aqueles apertos de mão servidos com sorrisos harmoniosos, me fizeram perceber que habitava uma bolha de preconceitos. O desconhecido as vezes assusta e faz com que, por medo, criemos barreiras e preconceitos com o novo. Me vi cercado de seres humanos cheios de vida e prazer pelo que faziam, receptivos a novos contatos. A noite prometia.

    Nos acomodamos em nossas poltronas e esperamos o iniciar do espetáculo. Sabia como a história se encaminharia, mas estava ansioso para ver a parte artística da apresentação. Composta de um elenco fantástico, a peça conduzia o público sem brechas para pensamentos paralelos. Estávamos entorpecidos pelo clima, pela história, por um cenário que, jogando com efeitos de espelho e luzes, despertava um interesse quase que infantil, puro, capaz de reter sua atenção por algumas horas. Havia perdido a noção do tempo, me perdia entre o discorrer da história e as memórias das aulas de teatro no segundo grau (ah, isso ninguém sabia!!!).

       Fomos conduzidos por mais de duas horas de espetáculo. Já estava apaixonado por uma das atrizes que compunham o elenco: Clarissa Kiste. Meu Deus, que mulher. Nos camarins era apenas um belo rosto, exalando um cheiro suave, arrebatador, mais ainda assim humano. Porém, ao pisar no palco, detentora de uma presença imponente e uma voz grave, cheia de emoção, conseguiu irromper a zona de conforto em que nos encontrávamos. A partir daquele momento, tinha toda a atenção que necessitasse da platéia. 

    O espetáculo seguiu maravilhosamente, fazendo os que ali estavam se entretecem com o espetáculo, sem um momento de desconcentração, deixando-nos certos do valor e talento daqueles que habitavam o palco. Ao final, nada mais justo e esperado que uma salva de palmas de uma de sala de teatro lotada. Magnífico!

    Saímos para jantar com o elenco. Onde? Famiglia Mancini. De repente estava sentado à mesa com todo o elenco de uma peça de teatro, dentre eles inclusive, atores globais como Rodrigo Lombardi e Eduardo Estrela. Àquela altura já não existia uma barreira entre nós. Na verdade, estava encantado com a forma que tratavam todos aqueles que vinham parabenizá-los. Eram de um carinho e atenção invejáveis. Valorizavam o feedback ali presente, sabem que é o que mantém o espetáculo grandioso.

      Foi então que ela, clara, claríssima, Clarissa, começou a discorrer sobre os desafios do ator. Falava sobre o mínimo desconforto causado pela fixação do texto (aos olhos do público, o ponto mais difícil) e a complexidade de se encontrar ali, exposto, brincando com a realidade, tendo que dar continuidade ao espetáculo de peito aberto. Contava-nos sobre os pensamentos paralelos que surgem ao longo do peça, ela e Rodrigo riam sobre as linhas de raciocínio paralelas que surgem enquanto atuam. "O que vou falar daqui alguns minutos?"," Tem uma maça no canto direito do palco", "Tenho que chorar quando ela fizer tal sinal". Falta de concentração? Juram que não. Apenas uma nível de concentração tão elevado, que conseguem atuar e prever movimentos futuros. Embriagava-nos com suas histórias fascinantes, em meio a um belo sorriso e um piscar maroto, delicioso, do olho esquerdo. E então ela falou: " O mais legal é que, quando abre-se as cortinas, não tem mais volta. Dali, só para frente!". 

    Estasiado com tal frase, tracei um paralelo imediato com o esporte: quando estamos comprometidos com uma prova, ou mesmo na execução de uma, temos a consciência de não ter mais volta. Podemos desistir? Sim, mas nunca recuperar os dias de treino, os quilômetros nadados, pedalados, corridos. Ao soar da buzina, corre-se para frente, é de peito aperto que nos atiramos ao mar. Ela explicava como raciocinam em cima de uma fala que está por vir enquanto atuam. Eu pensava em como, em meio a mais de cem quilômetros de bike, refletimos sobre a corrida que está por vir. Ela sobre uma palavra que às vezes insisti em travar a língua, uma cena com uma exigência maior. Eu sobre os primeiros quilômetros de corrida, sobre a barreira dos 36 km. Sabemos que, a partir daquele instante, do terceiro sinal, do som alucinante da buzina, apenas a linha de chegada, o cerrar das cortinas são merecedoras de nossa parada.

      Em meio a uma garfada na bela fulgazza que preenchia meu prato e um gole de vinho, tal semelhança entre realidades tão diferentes me encantava. Chegava à conclusão que o teatro e o esporte são intimamento próximos. Oscilam entre o lazer e a profissão, encantam multidões e, para aqueles que estão diretamente envolvidos, não deixam muitas opções: é conduzir, cada uma ao seu modo até o fim ou desistir. Fazendo uso de um jargão, dava fim a tal analogia: a vida imita a arte!

      Após tamanha reflexão, o triathlon entrou como assunto à mesa e encontrei em Eduardo Estrela um entusiasta. Detentor de uma visão empreendedora, uma clareza de idéias e de falas, iniciamos uma conversa sobre uma modalidade específica e, antes da segunda taça de vinho, já perambulávamos  por políticas públicas, formas sustentáveis de desenvolvimento do esporte e cultura e, claro, o senhor Walter Mancini. Tínhamos idéias e ideais muito parecidos. A conversa fluía tão espontaneamente que, sem perceber, já o chamava de Du. Íntimo! Após ficar estarrecido com tamanho talento dramatúrgico, agora despertava uma admiração ideológica. Sentava-se a minha frente alguém realmente interessante, esclarecida, e melhor, boa de papo!

     Passava de 3 horas da manhã quando pedimos a conta, nos despedimos de todos e, um a um, tomamos nossos rumos. Jorge e eu, claro, não poderíamos ter uma volta normal. Antes de pegarmos a estrada, fomos parados por uma blitz e me submeteram ao teste do bafômetro. Estava tão bem que até o guarda me aconselhou mais uma taça de vinho! Cheguei em casa quase cinco da manhã, cansado dos treinos, mas com a mente fervilhando mediante experiência extraordinária que acabara de vivenciar. Difícil fazer tantas emoções aquietarem e cair no sono. Porém se fazia necessário, uma vez que tinha treino de natação às 8 horas ada manhã. E, tomado por uma cansaço físico descomunal e uma bombardeio de pensamentos e emoções, encostei minha cabeça no travesseiro e dormi.

     Fica apenas a dica para aqueles que foram em São Paulo e região: troquem uma noite de balada e assistam à peça Dom Juan de Molière. Não sei se vocês conseguirão o jantar pós espetáculo, mas garanto que se encantarão com o espetáculo e, para aqueles que estiverem mais dispostos, poderão conversar prazerosamente com todos do elenco e tirar fotos  após o encerramento.