A largada está marcada para o
domingo às 7 horas, mas o choque de realidade ocorre no sábado anterior. Eis o
dia do check in da bike, onde todos os atletas trazem suas magrelas para a zona
de transição, juntamente com todo o equipamento que usarão ao longo do grande
dia. Ali se faz as últimas checagens, regula-se a marcha de partida da bike,
prende-se a sapatilha à bike, joga-se uma capa sobre aquela que o conduzirá e
ali, sem sentimentalismo, a abandonamos ao sereno, aguardando-nos pelas
próximas 12 horas. Sacolas penduradas no respectivo lugar, pintura do corpo
devidamente realizada, agora é hora de voltar para casa e tentar descansar um
pouco até a largada.
Então, às 3:30 da manhã, o
despertador toca. “It’s a beautiful Day”. Não existe humor a essa hora e a
música soa como piada Tento me libertar dos maus pensamentos e entrar no clima.
Aceito a melodia e saio do quarto com o bom humor digno de quem vai se jogar na
linha de frente de uma guerra. Acordo os demais membros da trupe e começamos os
preparativos para rumarmos para Jurerê. E é a melhor coisa que faço, pois
encontro Dedé cheio de risos, Marcinho tão resmungão por conta dos roncos
incessantes de Zoin e o próprio ainda sem entender o por quê de tantos
hostilidade por parte do coach. E nesse clima tomamos nosso café da manhã e as
4:10 já estamos na estrada.
Chegamos pouco antes das 5 da
manhã e, sem muita pressa, deslocamos por entre as ruas em busca da zona de
transição. E aqui a coisa toma uma dimensão maravilhosa: um frio congelante
ressoa pela manhã ainda por vir, a Lua reina solitária como maior fonte
luminosa e, mesmo com tudo a favor de um belo sono envolto em edredons macios,
nos vemos cercados de atletas, seguidos por familiares e amigos, todos em
procissão, com seus devidos rituais, acompanhando seus heróis rumo à largada. A
grandeza de um Ironman se faz presente nas primeiras horas do dia onde podemos
ver que aquilo pertence a muito mais que os 2000 inscritos. Por muitos meses a
rotina Ironman fez-se presente na vida de todos que ali peregrinam. É chegada a
grande hora de saborear o momento, como o primeiro trago em um velho scotch
envelhecido por longos anos.
E assim entramos na zona de
transição para trocarmos de roupa, checarmos as bikes, colocarmos as provisões
que trouxemos no dia, resolvermos problemas gastrointestinais, retocar a
vaselina por todo o corpo e voltarmos à rua. É o momento Clark Kent, onde entramos
pequenos mortais por um lado da tenda e saímos na outra extremidade fardados,
trajando roupas de borracha que parece-nos armaduras, com os números cravejados
nos braços, exibidos com orgulho ao longo do caminho. Nos juntamos aos que ali
nos esperam e iniciamos a caminhada rumo à praia.
Desde o primeiro Iron tenho nesse
momento a justificativa de toda a preparação, o dinheiro investido, as noitadas
recusadas e as manhãs de sábado dedicadas ao ciclismo. Ser recepcionado por um
céu enrubrescido, como se estivesse envergonhado por tantos admiradores, ainda
banhados pela luz do luar, é impagável. O momento sereno se repete e todos
marchamos calmamente rumo ao portão de entrada. Hora para confraternizarmos, trocarmos
boas energias com aqueles que nos apoiaram até ali, últimas fotos, atletas na
zona de largada, agora é esperar. Me junto ao Muru (Murilo Barizon) e,
repentinamente, surge o Felipe (Luiz Felipe). Ficamos juntos, conversando,
desejando boa prova um ao outro. Passa
Eduardo Mariutti, Mestre Orival (dessa vez trajando meias!!!!). Ali onde todos
estão parecendo pingüins a beira do abate, com suas tocas cor de pele
(horríveis diga-se de passagem!!), a emoção transcende a normalidade. Parece
exalada por cada poro da pele de cada atleta. Cada um, à sua maneira, parece
viver intensamente aquele momento. Aproveito para desejar boa prova ao Santiago
Ascenso. E em perfeita sincronia, assim que o Sol salta por detrás da montanha
em auto mar, a buzina soa estridentemente. Todos iniciam sua corrida rumo a
água, se benzem e se jogam de ponta. Está dada a largada do Ironman 2013.
Prefiro sair um pouco atrás,
podendo assim visualizar a linha que os que vão à frente estão traçando. Inicio
minha fase aquática de uma forma consistente, tentando puxar um pouco o ritmo a
fim de contornar a primeira bóia com um grupo de nadadores com o mesmo ritmo
que eu. E o plano parece fluir bem, mas quando chegamos à primeira bóia, a
situação complica: seres irracionais se amontoam, como se fosse obrigatório
raspar o ombro na bóia para dar continuidade à prova. Evito tudo aquilo, acho
uma brecha na muvuca e tangencio a rota, abrindo minha volta e conseguindo
nadar sem transtornos. Faço o segundo contorno, direciono o ponto de chegada da
primeira perna na areia e me vou.
Parecia tudo muito confortável,
nadando fácil, lembrando das instruções passadas pelo Samir no ano anterior:
“nade alongando, mas se sentir que não está progredindo, acelere a braçada”. E
assim eu fiz. Conseguia imprimir um ritmo aceitável, mas então começaram os
problemas. Alguns nadadores, sem a menor noção de navegação, se amontoavam a
minha frente, como se estivessem ziguezagueando em alto-mar. Era impossível
prosseguir. Obrigavam-me a parar, traçar uma nova rota e continuar. E assim,
sucessivamente, tais criaturas surgiam e a natação era interrompida e retomada.
Optei por nadar à direita da chegada e pude, enfim, obter caminho livre,
apertei o ritmo e pude observar o quanto de toucas cor de nada ia deixando para
trás.
Pisei na areia inteiro, sem
cansaço aparente e, ao invés da tradicional corridinha, caminhei. Queria lavar
a boca, soltar um pouco e voltar firme. Com 1 minuto e 47 segundos de terra,
fixei minha segunda bóia, a linha que seguiria e parti. A segunda perna da
natação cai como um segundo copo de cerveja: o primeiro é cheio de tensão, vem
para matar a sede, passa quase despercebido, mas o segundo é degustado, cheio
de prazer, já sem maiores preocupações. Sabia o ritmo que imprimiria, puxava
forte e, como não consigo ficar pegando esteira de ninguém (pois aquelas
bolhinhas de ar que vêm na cara me deixam louco!!!), vou de cara limpa. Azar o
meu, pois alguns estavam confortavelmente instalados no corredor que se formava
atrás de mim. Sem muito trabalho fizemos o segundo contorno e rumamos para a
transição. Lembro-me do ano anterior e de como ria ao ver a píer da chegada.
Não estava em êxtase, mas ainda assim contente por poder pisar em terra firme.
Agora a brincadeira começava a ficar séria.
Ironman é um negócio muito louco,
sério! Você fica tendo picos de sentimentos ao longo do dia, por mais
antagônicos que sejam. Ao sair da água a sensação é de alegria por ter vencido
a primeira etapa. Tira a roupa de borracha e corre todo pimpão pela zona de
transição. Então lembra que 180 quilômetros o esperam do lado de fora e então
remete aos tempos de colégio quando os meninos mais velhos te juravam para
depois da aula. Só que aqui não tem diretora nem mamãe para te buscar. É
colocar o capacete e partir pra batalha. Fomos.
Com pouco tempo de treino e uma
bike aquém do que havia feito no ano anterior, sabia que meu tempo no ciclismo
ia piorar, mas tinha certeza que a entregaria em condições de correr os 42
quilômetros seguintes. Parti para a primeira volta de 90 km. Com um percurso
muito favorável, vários atletas cometem o erro de imprimir um ritmo acima do
que treinaram. Fazem seu melhor pedal da vida e passam os 42 km caminhando e
contando aos outros o seu feito. Sabia que 30 km/h era meu limite. Em trechos
de vento contra (e eram muuuitos) a velocidade era muito baixa. Então, quando o
tinha a favor, sentava a bota e assim conseguia um equilíbrio. Fechei a
primeira volta com 29.8 de média. Se tudo continuasse assim, meu tempo seria
até aceitável.
Mas estamos falando de ironman e
aqui só acaba quando termina. Literalmente! E na segunda volta alguém resolveu
ligar o ventilador no máximo e colocou pra girar. Não tinha direção para onde
se pedalasse que uma rajada de vento não criasse empecilhos. Comecei a pensar
que talvez fosse melhor correr com a bike a pedalar. Era tão ridículo que em
alguns trechos clipava para obter 17km/h. Comecei a ver o pedal ruim ir por
saco de vez. Mas não estava disposto a fazer força e estragar a corrida.
Aceitei a frágil posição em que me encontrava e toquei em frente.
Até que, faltando um pouco menos
de 20 km, o Felipe me passou. Aquilo deu uma reanimada. Senti-me novamente nos
tempos de Mogi e por que não uma perseguiçãozinha. Esperei o último retorno,
pois sabia que a volta era quase toda plana, e imprimi um ritmo alucinante. Com
o queixo praticamente no guidão, acima dos 40 km/h, peguei a pista da esquerda
e danei a ultrapassar que quer que fosse!! E nessa ficou Felipe também!! Como
sabia que ele não alteraria muito seu ritmo, pois tinha toda a prova planejada,
aproveitei para segurar o máximo que conseguia naquele ritmo. Mas já nos
últimos 5 km já não respondia mais aos estímulos e o jeito foi subir a postura
e pedalar solto até a transição. Estávamos muito perto. Agora era soltar a
perna e partir para a corrida. Vi que tinha subido muito meu pedal (ao final 6:23)
em relação ao ano anterior, mas ao menos saía para correr sem maiores
problemas.
Feita a transição, pausa pro
xixi, saí para correr e vi que o Felipe já corria a minha frente. Cheguei junto
e perguntei para quanto pensava em correr. Respondeu que faria num pace de 6
minutos por km. Pareceu-me ótimo, pois não poderia fazer muito mais que isso e
ainda correria às cegas caso partisse sozinho. Mantive-me junto a ele ao longo
da primeira volta (de 21 km ). Ele corria como uma máquina, sem titubear, nada
de variações no ritmo. Eu já prefiro intercalar meus estímulos para manter o
corpo “acordado”. Com isso afastávamos e reagrupávamos ao longo do percurso.
Chegada a grande subida de Canasvieiras, todos caminham! Descida todo santo
ajuda – hora de correr-. Fizemos o retorno dos 13 km e caminhei um pouco para
soltar a perna, comer uns quitutes (750 doletas – tem que comer de tudo !!!!) e
ele partiu. Corri mais um pouco, subida da volta só caminhando, descida
correndo e então chegasse à reta final. Vixe, como eu gosto daquela esquina!!!
Perninha fica leve!!! Apertei o passo e fui. Pela primeira vez via realmente a
galera que estava por ali torcendo por nós, dei uma descontraída e fui buscar
minha braçadeira da primeira volta.
Feito o retorno, reencontrei o
Felipe e retomamos o passo. Estava começando a sentir frio e optei por passar
no Special Needs para buscar minha segunda pele. Péssima idéia. Primeiro que
havia a deixado do avesso (burro!!), depois não conseguia colocá-la, pois
estava suado e por nada ela entrava. Quando enfim coloquei-a, rodei uns 3 km e
comecei a sentir um calor infernal. Tentava erguê-la, valorizando todo o
trabalho que tinha dado colocá-la, mas não adiantava. Tive que tirar e
amarrá-la na cintura (burro de novo!!). Nessa já havia perdido meu pacer!!
Apertei o passo e comecei a vê-lo um pouco a frente. Mas estava muito bem e
sabia que agora era apenas trecho plano. Optei por continuar mais forte. Passei
pelo ponto onde havia encontrado a galera anteriormente, mas já não estavam lá.
Será que estavam na arquibancada para a chegada?? Peguei a segunda braçadeira e
parti para os últimos 10 km.
E aqui não tem segredo: é tomar
sopa com coca mesmo! Mermão, aquela sopinha levanta qualquer defunto, quiçá uma
carcaça trocando as pernas!!! Na boa, revigora. Copinho de sopa, coquinha e
pernada neles!!! Corria fácil. Talvez em busca de outro posto de hidratação!!
Ah, sal e água a vontade!!!! Assim fomos seguindo as placas que nos levavam à
linha de chegada. Por um momento vislumbrei um sub 12 horas. Possível? Com
certeza, mas sabia que poderia pagar um preço por isso. Tinha feito 40 dias de
treino, muitos duvidavam que um fosse chegar, não me senti confortável para
cobrar tempo. Optei por acabar no momento certo. Desliguei o cronômetro e
marchei rumo ao fim.
Foi quando pela última vez
naquele dia entrei na Búzios. Sim, já recebido com um copinho de sopa.
Agradecia a todos que ali estavam, vinha confraternizando com aqueles que,
sentados em suas calçadas, esforçavam-se para ler nossos nomes em um papel à frente
de nossos corpos e direcionarmos diretamente bons fluidos. É gratificante ver
um amigo gritar seu nome ao longo do dia, mas um estranho? Não tem preço. É um
dia de muitas provações e aprendizado. Agora tentava retribuir ao máximo o
carinho. Gentileza gera gentileza.
A aglomeração aumentava, o
corredor se estreitava, a placa dos 42 km surge. Entramos nos metros finais e
somos escoltados por uma salva de palmas e assobios. É arrepiante! Surge então
o grande holofote, como se fosse a luz no fim do túnel, seu nome soa pelos
autofalantes, pisa-se o tapete azul. Procuro pelos meus ao longo da platéia,
mas não encontro nenhum deles. Ainda assim os aplausos continuam. Volto-me ao
horizonte, cruzo o pórtico de chegada, lá está escrito “you are na ironman”.
Sim, eu sou!
Sem entender o que havia
acontecido com todos que me acompanhavam, desfruto de uma boa massagem,
alimento-me de tudo que é oferecido pela organização, retiro medalha, minha
bike, troco de roupa e saio, pela última vez, da zona de transição. Acabava ali
mais um ironman. Encontro o pessoal e então descubro o motivo do
desaparecimento: haviam saído para escoltar um amigo do Dedé. Como eu disse no
começo do texto, “...Você fica tendo picos de sentimentos ao longo do dia, por
mais antagônicos que sejam”. Rolou um desapontamento coletivo, mas não se pode
deixar que maus sentimentos estraguem o momento. No ano anterior tinha apenas
dois conhecidos (grande Muru e Lê Xuxu) que me apoiaram o dia todo e ainda me
puxaram no último km (certo Lê?). Esse ano, mesmo com tantos membros presentes,
não tive um rosto um rosto amigo para compartilhar o momento, que rapidamente
desfrutei com estranhos que ali apoiavam cada guerreiro posto à prova desde 7
da manhã.
Agora posso voltar para clausura
dos estudos. Serão horas e horas de preparação intelectual, as HBC (horas
bunda-cadeira) até que consiga obter sucesso. Aí então retornarei aos treinos,
ao triathlon e, claro, ao Iron. A brincadeira do momento é: esse ano fiz um
iron com uma bike coroa; o próximo farei com uma cara!!!! Adoro!!
E o cone?
ResponderExcluirCara, como espectador escrevi coisas bem parecidas no meu blog, do outro ponto de vista! Dá uma lida... Parabéns pela prova!
ResponderExcluirhttps://queroveroco.wordpress.com/2013/05/28/os-grandes-feitos-dos-anonimos/
Abraços,
Parabéns.
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