domingo, 9 de junho de 2013

A elegância do ouriço



 Foi buscando algo que saciasse meu jovem e voraz apetite pela literatura que tivemos nosso primeiro encontro. Garimpando uma prateleira recheada de obras interessantes, e que nos últimos tempos serve-me com a presteza de um prendado garçom, tive minha atenção a um título sagaz: a elegância do ouriço. Tomado pela estranheza do nome e curiosidade de destrinchar suas páginas, tomei-o sob o braço e pus-me a caminho de casa para iniciar o minucioso processo de dissecação que me parecia digno àquela obra.
   
   E assim adentrei na criação de Muriel Barbery. Com um preâmbulo intitulado Marx, mostra a densidade do que está por vir exibindo um diálogo pífio nutrido por uma densa reflexão filosófica, carregada de um vocabulário catedrático, enfervescendo em nosso personagem como um vulcão prestes a entrar em erupcão.   Extasiado pela continuação dos fatos, busco a companhia de um dicionário para dar sequencia à minha leitura. Devidamente munido, ouso prosseguir.

   Tudo se passa em um bairro nobre de Paris, mas especificamente em um prédio, onde a autora consegue reunir personagens peculiares, que jamais seriam imaginados ocupando o mesmo espaço físico. Mas os pontos fulcrais são sra. Michel, a zeladora do prédio, e Paloma, uma joia rara camuflada sob a carapaça de uma criança de 12 anos. As duas - cada uma em seu mundo - conduzem de forma peculiar toda a trama. E suas singularidades são apresentadas aos primeiros pensamentos transcritos.

   Sra. Michel, uma concierge de meia idade, esconde-se em seu quarto de concierge, reduzindo-se à insignificância que a nobre sociedade francesa espera de sua espécie. E deixa claro estar ciente de seu papel e como interpretá-lo. Porém guarda pra si uma inteligência sublime, fortificada ao longo de seus anos de clausura por literatura densa e desfrute de filmes e artes diversas. Nomeia-se "colecionadora de bibliotecas" e, como uma traça, devora acervos a muito esquecidos por aqueles que a cercam. E por isso, de uma bagagem cultural impressionante, expressa em pensamentos a mediocridade daqueles que a cercam, o quão vazio estão em seus interiores e, reféns de uma cadeia nociva de costumes rasos, acabam cegos em suas próprias verdades.

   Paloma, caçula de uma rica família residente no mesmo prédio, também desempenha seu papel na sociedade. Descobrindo logo cedo ser "um gênio", opta por ocultar-se, evitando assim ter todas as atenções voltadas à sua pessoa. Com maestria conduz sua vida acadêmica como número 2 da sala, mantendo sempre a número em seu radar para saber como e onde crianças normais errariam. Assim ludibria todos aqueles que a cercam, permanecendo no mais das horas presa em pensamentos, relatados em seus dos diários, onde nutre repúdio por toda a família e os de seu convívio, o que a leva a marcar sua data de morte para alguns dias adiante.

   E assim, como pêndulos, esses dois seres imaculados desempenham bravamente seus papéis, oferecendo ao mundo o que é esperado e, ao adentrarem em suas cápsulas, fornecem àqueles que as acompanham por entre as linhas discorridas um prazer indescritível. Enquanto me perco no submundo de suas mentes, acabo eu mesmo entrando em um universo paralelo e acabo eu mesmo interpretando um papel. Entorpecido pela profundidade da narrativa, cumpro as obrigações que de mim são esperadas e me tranco em busca da prazerosa sequencia dos fatos.

   Sra. Michel, a concierge, mostra-se amante e conhecedora dos romances russos, especialmente Leon Tolstoi e sua obra "Ana Karenina". Desconhecedor da causa, sua traído por minha ignorância e, ao visualizar apenas um frio sibérico vindo do oriente, sou apresentado a grandeza de uma conclusão fruto de um trecho da supracitada obra. Primeiro narrando um aristocrata que, para esquecer sua amada, vai ceifar com seus camponeses. Porém, como não lhe pertence tal labor, cede ao cansaço, mas é salvo pelo velho líder do bando que ordena folga. Retoma-se o trabalho e, mais uma vez, Levin desaba, o velho homem concede outra folga aos homens. Então, "ao sabor das paradas e retomadas...ele libera seus movimentos do entrave de sua vontade, entra no leve transe que dá aos gestos a perfeição dos atos mecânicos e conscientes, sem reflexão nem cálculo, e a foice parece manejada por si só, enquanto Levin se delicia com esse esquecimento no gesto, o que torna o prazer de fazer maravilhosamente alheio aos esforços da vontade". Espetacular! Leio isso com a felicidade de quem acaba de descobrir um grande tesouro. Mas as surpresas na cessam e, na mesma toada, Renné faz uso de mais um trecho da obra, sobre o ardiloso Riabinin, negociante de bosques, dos quais tiram conclusões apressadas pela aparência e pela posição, sobre sua inteligência. Despoja os senhores que o desprezam, mas não sabem freá-lo. E assim nossa concierge explica sua própria existência.

   Sinto o peso de tais palavras como se algo fixasse meus pés ao chão e, aproveitando o momento, reflito sobre o triste hábito que temos de julgar pela aparência. Crescidos sobre ditos como "a primeira impressão é a que fica", vejo cercado por pecados que talvez não possa ser perdoados, porém ainda podem deixar de serem praticados. Um copo d'água para ajudar a descer a culpa e prossigo com a leitura.

  Uma sequência de ocorridos traz ao prédio um novo morador, Sr. Ozu Kakuro. Com a sutileza apaixonante do povo japonês, esse senhor consegue causar o caos em todo o edifício apenas com uma singela reverência. Aos mundanos, o interesse pela figura, sua reforma no apartamento, sua fortuna. Porém uma congruência entre o velho oriental e as duas preciosidades da obra faz com que se tenham suas vidas (ou suas "bolhas") acopladas tal qual pequenas gotículas de água sobre um pano impermeável: mantém sua singularidades, mas, à menor aproximação, aglutinam-se dando forma a um novo corpo. Ali cada unidade foi preservada sob uma nova aparência.

   A paixão por Tolstoi revela-se uma deliciosa concordância entre Ozu e Renné. A pequena Paloma, fizarda em permanecer presa com Ozu no elevador, revela-se peculiar, travando um diálogo com o mesmo que resulta em um perfil traçado por eles sobre sra. Michel e que, para mim, vem para dar sentido ao meu fascínio inicial: "A sra. Michel tem a elegância de um ouriço: por fora é crivada de espinhos, uma verdadeira fortaleza, mas tenho a intuição de que dentro é tão simplesmente requintada quanto os ouriços, que são uns bichinhos falsamente indolentes, ferozmente solitários e terrivelmente elegantes". Mais uma vez sou refém de meus "pré-conceitos": vejo beleza onde antes só via espinhos.

   E assim, aquela que antes vivia enclausurada em seu cômodo, presa a seus livros e pensamentos, a pré-adolescente superdotada que planejava se matar e incendiar seu apartamento para tirar de sua família a futilidade que os mantém vivos, regidas por um senhor oriental de boa índole,  vêem sentido para suas vidas e, como nunca haviam feito antes, conseguem ser elas mesmas e sentem-se amparadas e compreendidas. Cada uma, em pensamento, relatam a singular importância que a outra tem em tal graça.

   E então, como uma tempestade de verão que chega repentinamente, aquilo que era dia, torna-se noite, uma catástrofe muda o rumo da obra e, quando menos esperamos, nos vemos dentro de uma eloquente reflexão sobre a morte. Primeiro a abordagem sobre revermos toda a vida no último instante. Uma perda dos sentidos sensoriais, um mergulho profundo no interior da alma e começa-se a reciclagem de rostos que, de alguma forma, realmente importam serem lembrados. Então a visualização de alguém que já havia partido remete a um pensamente oportuno: em um processo de despedida daqueles que nos cercam, trazer alguém do mundo dos mortos para despedir-se é como ter que matá-lo novamente. "Portanto, no sofrimento que sentíamos, não basta os outros se afastarem; também é preciso matar os que não mais subsistem senão por nós". Perco-me em pensamentos...

   Então remete-se a uma questão levantada anteriormente: o que importa não é morrer, mas o que se está fazendo no momento de morrer. Como um tiro de misericórdia,  a passagem de uma vida para outra é feita com profundidade: "O que fazia? Tinha encontrado o outro, e estava pronta para amar. Depois de cinquenta e quatro anos de deserto afetivo e moral, depois de cinquenta e quatro anos de clandestinidade e de triunfos mudos no interior acolchoado de um espírito isolado, depois de cinquenta e quatro anos de ódio por um mundo e uma casta que eu transformara em exutórios de minhas fúteis frustrações, depois desses cinquenta e quatro anos de nada...". "É como se as notas da música fizessem uma espécie de parênteses no tempo, de suspensão, um alhures aqui mesmo, um sempre no nunca. Sim, é isso, um sempre no nunca".

   Aquilo que a alguns dias vem ocupando meu tempo, proporcionando-me prazeres imensuráveis, agora me expõe. Sem conseguir conter-me, folheio as últimas paginas do livro submerso em lágrimas. Começo a ver sentido em tamanha afinidade com o mesmo. Sinto-me como se estivesse em um espelho a observar toda aquela conjuntura de fatos que soam tão íntimos. Desde o início identifico-me com o confinamento, a restrição ao social, aos poucos amigos bem vividos, aos julgamentos precipitados, à opção de preencher-me sem necessariamente ter que apresentar-me ao mundo. Talvez não seja digno de ter a elegância descrita de um ouriço, mas visto perfeitamente a carapaça de espinhos.

   Com a mesma euforia que devorava cada página, crescia em mim a vontade de compartilhar esse livro com uma pessoa em especial, alguém que nutre uma paixão pela literatura, que apresentou Fernando Pessoa aos seus, e que durante algum tempo dividíamos livros e boas prosas. Não sei se ainda paira por aqui, mas sinto-me obrigado a oferecer algo tão belo e grandioso a alguém que saberá desfrutar pacientemente os prazeres ali presentes. Certo que ninguém faz a menor ideia de quem seja (exceto a mesma, talvez!!!), encerro esse extenso texto com tal compromisso e uma última citação: "Se quiser se cuidar, cuide dos outros; e sorria ou chore por essa feliz reviravolta do destino".


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